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Os transgênicos dominaram o mundo

Os alimentos geneticamente modificados representam mais de 90% de alguns cultivos, como os de milho e soja. Investigamos se eles trariam ameaças à saúde

Por André Biernath
Atualizado em 21 fev 2018, 12h00 - Publicado em 1 jul 2016, 13h13
Jonatan Sarmento
Jonatan Sarmento (/)
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Um dos episódios mais trágicos da história da humanidade foi a Grande Fome da Irlanda, ocorrida entre 1845 e 1849. Nesse período, o fungo Phytophthora infestans devastou as plantações de batatas daquele país. O tubérculo era o principal — muitas vezes o único — alimento da maioria do povo. Sem ter o que comer, mais de 1 milhão de pessoas morreram e a migração em massa esvaziou campos e cidades, fazendo a população irlandesa reduzir 25%. Para evitar que catástrofes como essa se repitam é que a engenharia genética vem trabalhando nas últimas décadas. Graças a ela, hoje já existe no mercado uma variedade de batata imune à praga que afetou a Irlanda.

Esse é apenas um exemplo de como a ciência se prepara para alimentar a humanidade — ainda mais se considerarmos que, em 2050, seremos mais de 9 bilhões de bocas cheias de apetite. Vai haver comida pra tanta gente? Uma das soluções é apostar na transgenia. “Ela envolve selecionar em um ser vivo um gene com alguma característica vantajosa e transferi-lo para outro”, simplifica a compreensão o biólogo Marcelo Menossi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior paulista. Um dos objetivos é ampliar a produtividade, uma vez que há pouco espaço para expandir as lavouras.

Quem se beneficia mesmo dos organismos geneticamente modificados (OGMs) seriam os agricultores. “Sementes desse tipo possuem duas propriedades principais: tolerância a herbicidas, que são jogados no roçado para matar ervas daninhas, ou resistência a pragas, como lagartas, que destroem o vegetal”, aponta o engenheiro agrônomo Francisco Aragão, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília. Ele desenvolveu, por exemplo, um tipo de feijão capaz de passar ileso pelo vírus mosaico, um dos grandes inimigos das safras do grão. Mas… e no prato?

Os alimentos transgênicos estão aprovados para consumo no mundo há 20 anos e cada vez mais ganham espaço nas nossas refeições. Atualmente, 93% da soja brasileira é alterada geneticamente, assim como 82% do milho e 66% do algodão. Repare: os industrializados que utilizam esses ingredientes levam na embalagem um “T” dentro de um triângulo amarelo. Além do universo da comida, temos outras situações nas quais a transgenia mostra seu valor: toda a insulina injetada pelos diabéticos hoje é produzida por bactérias transgênicas. Antes, era preciso extrair o hormônio do pâncreas de porcos.

Embora os frutos dessa tecnologia pareçam perfeitos, ainda há muita polêmica em torno dos OGMs. “Além de os lavradores ficarem reféns das empresas, vantagens como a resistência a pragas não se mantêm por muito tempo”, analisa o agrônomo Rubens Nodari, da Universidade Federal de Santa Catarina. E há quem tema que eles possam ameaçar nossa saúde. Será?

As pesquisas recentes mostram que os transgênicos não teriam efeitos nocivos. Uma revisão da Universidade de Perúgia, na Itália, examinou 1 700 artigos e não esbarrou em evidência de que eles provocam chabus. “Em 20 anos de uso, não há relato de malefícios”, diz o agrônomo Geraldo Berger, diretor de regulamentação da Monsanto. Claro, ninguém sabe o que acontecerá daqui a um bom tempo — apesar de modelos animais não indicarem mesmo problemas. “Só vale lembrar que há um forte conflito de interesses, uma vez que parte dos estudos é patrocinada pelos produtores de sementes transgênicas”, critica a nutricionista Ana Paula Bortoletto, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor.

Um dos maiores temores é o crescimento dos casos de alergia. Os genes de algumas espécies causariam reações indesejáveis quando transmitidos para outro organismo. Isso até já ocorreu: os experts da Embrapa criaram um feijão mais rico em proteínas ao inserir um trecho do DNA da castanha-do-pará nele. Mas certas pessoas são alérgicas à castanha. Por tabela, também não tolerariam esse feijão. O trabalho, então, foi interrompido antes de chegar às prateleiras. Para evitar esse tipo de enrosco, as leis exigem que os primeiros testes já descartem a possibilidade de o transgênico ocasionar respostas anormais no organismo.

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Ainda há apreensão em torno de uma possível resistência a antibióticos. É que alguns transgênicos são feitos de bactérias. Algumas informações genéticas delas, em tese, poderiam ser transferidas para o DNA de outros micro-organismos, como os do nosso trato digestivo, e, assim, dificultar o tratamento de infecções. Mas a probabilidade de isso se concretizar é mínima, garantem especialistas. “É o mesmo risco de um sujeito comer alface, o gene da clorofila passar para seu genoma e ele se transformar no Incrível Hulk”, ironiza o agrônomo Aluízio Borém, da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais.

Uma das vantagens citadas sobre a engenharia genética é o fato de esses produtos utilizarem menos agrotóxicos. Dados do Serviço Internacional para a Aquisição de Avanços em Agro-Biotecnologia apontam uma redução de 37% no uso de pesticidas e herbicidas no planeta nos últimos 20 anos. Porém, num período parecido, o Brasil se tornou o campeão mundial no emprego de venenos. Entre 2003 e 2013, o mercado de misturas químicas para a agricultura cresceu 190% por aqui, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

E quem recebeu mais desses agrotóxicos? Soja, milho e algodão, justamente as variedades transgênicas aprovadas. “Nosso país está na região tropical, com uma incidência alta de pragas, e a produção aumentou muito nessas décadas, o que eleva a demanda pelos químicos”, justifica a bióloga Adriana Brondani, diretora do Conselho de Informações sobre Biotecnologia.

Os entendidos dizem que o perfil dos pesticidas também se modificou bastante. “Os compostos de hoje são menos tóxicos que os de antigamente”, assegura Borém. Além disso, o número de aplicações estaria abreviado. “No feijão, antes era necessário realizar 16 administrações para controlar os vírus que infestam o cultivo”, calcula Aragão. “Com o transgênico, é preciso usá-los no máximo três vezes”, compara.

O herbicida mais vendido para os vegetais modificados é o glifosato, que ganha dos órgãos regulatórios uma tarja verde, sinal de que seria seguro. Mas há muita controvérsia nessa classificação. “A própria Organização Mundial da Saúde admite que ele tem potencial cancerígeno”, conta a nutricionista Julicristie Machado de Oliveira, da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp. Seus efeitos na saúde e no meio ambiente carecem de investigações, e a própria Anvisa busca conduzir uma segunda avaliação sobre a toxicidade do material.

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Os artigos relacionam os agrotóxicos — eles, sim — a diversos problemas, de distúrbios na tireoide a doenças neurológicas. O ideal seria bani-los, o que parece sonho impossível no atual modelo de vastas plantações e poucos cultivares. O engenheiro agrônomo Mateus Mondin, do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), em Piracicaba, acredita que o panorama mudará. “A tendência é que apareçam maneiras alternativas de combater infestações sem se valer de químicos, como investir em agentes biológicos e micro-organismos”, diz. Enquanto isso…

Incrementos à mesa

Os transgênicos entram numa novíssima fase: começam a ser fabricados alguns vegetais turbinados, que trariam benesses nutricionais para o consumidor. É o caso do arroz com betacaroteno e da alface cheia de ácido fólico. “As pesquisas com esses itens demoraram a apresentar bons resultados, mas eles devem dominar o mercado em breve”, prevê o bioquímico Flavio Finardi Filho, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

Para estudar, desenvolver e obter a chancela de um transgênico, as companhias levam mais de 15 anos e gastam centenas de milhões de dólares — daí a demora para provarmos as novas opções. E esse cenário acaba excluindo boa parte das pequenas iniciativas, uma vez que só os gigantes do ramo têm poderio para um investimento tão alto.

Julicristie questiona a validade dos novos transgênicos: “Será que precisamos mesmo de fortificação? Por que colocar ácido fólico na alface se a natureza já nos dá ótimas fontes do nutriente, como o espinafre?” O que nos resta é torcer para que todas as pendências políticas, ideológicas e científicas sejam resolvidas. Afinal, os 9 bilhões de seres humanos que viverão em 2050 estarão esperando comida farta, segura e saudável.

O que é um transgênico?

Entenda como nasce um deles

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Seleciona

Cientistas identificam e extraem um gene de uma bactéria ou de um vegetal com algum poder interessante — como ser resistente a pragas.

Copia e cola

Esse pedaço de DNA é transferido para o código genético de uma planta, que ganha aquela particularidade da outra espécie.

O que a transgenia quer oferecer

Confira exemplos do que pode virar realidade nos próximos anos

Arroz dourado

Nas Filipinas, os cientistas criaram um arroz — o principal alimento de metade da população mundial — rico em betacaroteno, precursor da vitamina A, cuja falta provoca perda da visão e debilita a imunidade.

Alface para grávidas

A Embrapa desenvolveu uma alface com uma quantidade 15 vezes maior de ácido fólico. Bons teores do nutriente são importantes para a formação do bebê na gestação.

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Tomate colorido

Na Esalq-USP, engenheiros cruzaram várias espécies e fabricaram um tomate com mais vitaminas que os convencionais. Ele é roxo por causa das doses extras de antocianina, substância que protege as artérias.

Soja tunada

A multinacional Monsanto inventou uma soja rica em ômega-3, gordura muito encontrada em peixes como sardinha e que faz muito bem para o peito.

Maçã duradoura

Uma empresa canadense conseguiu aprovação para um tipo da fruta que não escurece após ser cortada. O objetivo é evitar desperdícios.

* Reportagem publicada originalmente na edição de maio de 2015 da Revista SAÚDE

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