Por que o flúor é um grande aliado na guerra à cárie
Especialista examina como a substância presente na água potável e no creme dental defende a boca
“Vai escovar os dentes!”. Esta é certamente uma das frases que mais se escuta durante a infância. Desde pequenos somos instruídos a higienizar os dentes ao acordar, após as refeições e antes de dormir. E nesse ritual o creme dental sempre foi parte fundamental, já que, além de ajudar na remoção de placa bacteriana, contém flúor.
O flúor é um elemento químico da família dos halogênios, um mineral encontrado facilmente na natureza, por toda a crosta terrestre. O material pode ser sintetizado em laboratório e ser adicionado a uma série de produtos, como os cremes dentais e a água fornecida pelas companhias de saneamento público. Sua utilização ocorre há mais de 60 anos em todo o mundo e é recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pela Organização Pan Americana de Saúde, pelo Ministério da Saúde e também pelo Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CROSP).
Mas, afinal, quais são seus benefícios? Como ele atua em prol da saúde bucal? O flúor trabalha nos processos de desmineralização e remineralização que ocorrem naturalmente na boca. Além disso, possui efeito antienzimático e antimicrobiano, eliminando algumas bactérias e impedindo a multiplicação das mesmas.
Uma das maneiras mais comuns de obter o flúor é por meio da água que chega às nossas torneiras… A água fluoretada. Nesse caso, o flúor é absorvido pelo estômago e retorna à cavidade bucal pela saliva e pelo fluido gengival. O uso da substância também pode ocorrer por via tópica, ou seja, quando ela é aplicada diretamente na boca. Nessas condições, o flúor é apresentado à cavidade bucal por meio de bochechos, escovação dos dentes e na forma de gel ou espuma, inclusive com moldeiras ajustáveis.
Todo mundo pode se beneficiar com o uso do flúor, inclusive as crianças. Em 2015, a Academia Americana de Pediatria recomendou que os primeiros dentes dos bebês devem ser higienizados com pastas de dente que contêm o produto. Como as crianças tendem a engolir o creme dental, a quantidade recomendada é a de um grão de arroz ou de ervilha. Mas o ideal é que os pais procurem um cirurgião-dentista, para indicar a frequência da escovação e como essa limpeza deverá ser feita.
E o excesso de flúor?
Apesar das inúmeras vantagens, é preciso ter uma dose de cautela. A ingestão excessiva do flúor, no processo de formação dos dentes, pode causar a chamada fluorose, condição em que a cor do esmalte dos dentes passa a exibir uma tonalidade esbranquiçada, pequenas manchas ou linhas brancas. Em casos mais severos, os dentes adquirem uma coloração mais escura, mais acastanhada ou marrom, podendo haver perda de tecido dentário também.
Essas manchas são generalizadas, ou seja, não existe a possibilidade de um único elemento ser afetado. Elas também ocorrem de maneira simétrica — se, por exemplo, o dente incisivo lateral superior esquerdo for atingido, o incisivo lateral superior direito também será.
A gravidade da fluorose dependerá da dose de flúor ingerida, da duração da exposição, do tempo de ingestão e também da reação do organismo. Alguns fatores biológicos interferem na história, como baixo peso corporal e até o estado nutricional. Além disso, o uso de gotas e comprimidos que possuem flúor, inclusive complexos vitamínicos recomendados por pediatras, podem favorecer o aparecimento da fluorose.
O tratamento da condição varia de acordo com o grau de severidade do dente atingido. Para manchas mais superficiais, na maioria dos casos a microabrasão, procedimento de desgaste químico e mecânico superficial do esmalte dentário, oferece bons resultados. E o clareamento dental também pode ser associado.
Em casos de manchas mais escuras, pode-se realizar uma macroabrasão, depois uma microabrasão e por fim o clareamento. Já em casos mais graves, nos quais os dentes foram duramente atingidos pela fluorose, talvez seja necessária a utilização de facetas, aquelas peças de porcelana que recriam a aparência natural dos dentes.
Nas águas de abastecimento
Desde a década de 1970, a fluoretação das águas passou a ser obrigatória no Brasil, sendo regulada pela Lei nº 6.050, de 24 de maio de 1974. Isso porque a quantidade correta de flúor aplicada à água combate a formação da cárie. Teores de flúor baixos não reduzem o problema.
Teores altos, por sua vez, são igualmente prejudiciais e podem levar à fluorose. Se considerado o padrão adotado pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, balizado pela resolução SS-250 (de 1995), as concentrações em uma faixa de 0,6 a 0,8mg/l são tidas como apropriadas. Já pelo padrão do Centro Colaborador do Ministério da Saúde em Vigilância da Saúde Bucal (CECOL) — referencial mais recente e considerado por diversos especialistas um modelo atualizado para esse tipo de mensuração — a classificação do teor do flúor na água não é dividida apenas em adequada ou inadequada. Os parâmetros considerados são benefício e risco. Ou seja, o teor de flúor na água pode beneficiar a prevenção da cárie e/ou representar risco de ocorrência de fluorose.
Sabemos que a aplicação de flúor nas águas de abastecimento público traz resultados positivos no combate à cárie. No Brasil, alguns municípios já vinham implementando a fluoretação desde a década de 1950. O primeiro deles foi Baixo Guandu, no Espírito Santo, que em menos de 15 anos registrou redução de quase 70% no índice de cáries entre crianças com até 12 anos de idade. Ainda assim, foi somente em 1974 que o procedimento virou lei federal. Tudo indica que os números continuam a cair. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2003, 69% das crianças de 12 anos tinham cárie. Já em 2010 esse número caiu para 56%. A média de dentes atingidos pela cárie também caiu. Em 2003 era de 2,8. Em 2010 foi de 2,1 — uma queda de 25%.
O projeto Vigiflúor
Justamente por causa dos importantes resultados obtidos com a fluoretação nas águas de abastecimento, em 2015 o CROSP — em parceria com a Universidade de São Paulo e a Universidade Estadual de Campinas — realizou o mais amplo levantamento já realizado no mundo sobre a fluoretação das águas, o projeto Vigiflúor. O estudo analisou as águas de mais de 98% dos 645 municípios do estado de São Paulo, e concluiu que 30% estavam com níveis inadequados de flúor. Ou seja, três em cada dez amostras coletadas não atenderam ao parâmetro de obtenção do máximo de benefício anticárie com o mínimo de risco de fluorose dentária.
A iniciativa foi uma das três finalistas na área de Saúde Bucal da 10ª edição do Prêmio Saúde e recebeu o prêmio especial Colgate em reconhecimento à importância do mapeamento do flúor nas águas de abastecimento do estado de São Paulo como instrumento de prevenção.
O combate à cárie continua
Uma higiene bucal adequada deve ocorrer com a escovação três vezes ao dia e com a utilização de um creme dental fluoretado. Além disso, o cirurgião-dentista poderá indicar, caso seja necessário, tratamentos complementares com o flúor. Independentemente da maneira usada para sua obtenção — seja por meio das águas fluoretadas, pasta de dente ou aplicação no consultório —, a substância segue como essencial no combate à cárie, um mal que continua sendo um desafio para o Brasil.
* Dr. Marco Antonio Manfredini é cirurgião-dentista e secretário do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CROSP)