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O relato de uma médica que está lidando com o coronavírus na Alemanha

A profissional conta como o hospital em que trabalha e o país como um todo vêm se preparando para enfrentar o novo coronavírus

Por Caroline Hidal, médica brasileira que trabalha na Alemanha*
Atualizado em 9 abr 2020, 18h53 - Publicado em 24 mar 2020, 11h53
coronavirus na alemanha
A médica Caroline Hidal é uma das profissionais de saúde que está enfrentando a pandemia do novo coronavírus na Alemanha. (Foto: Arquivo pessoal/Divulgação)
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Meu nome é Caroline Hidal, sou uma médica brasileira e atualmente moro em Stuttgart, uma cidade na Alemanha, onde atuo no departamento de oncologia, hematologia e cuidados paliativos. A Alemanha já tem 24 774 casos confirmados do novo coronavírus e 94 mortes, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) do dia 23 de março. Na Europa, só França, Espanha e Itália apresentam números maiores. Como estamos em uma fase mais avançada da pandemia do que o Brasil, resolvi contar como as autoridades e nós, profissionais de saúde, estamos lidando com o problema.

O Ministério da Saúde Alemão está adotando políticas públicas com base nas piores previsões do impacto da doença na população e no serviço de saúde. Quanto antes e melhor estivermos preparados, menor será o caos nos atendimentos. No momento, estamos ainda com a possibilidade de atender adequadamente a demanda, proporcionando um tratamento de qualidade, fato que possivelmente contribua com a mortalidade baixa (em torno de 0,3%) que estamos vivenciando. Entretanto, pelo potencial de disseminação do vírus, estamos com a expectativa de que uma parcela necessitará internação hospitalar — uma parcela com quadros graves. As estatísticas ainda podem mudar bastante.

Nós, residentes, estamos nos preparando com modificações de escalas de plantão e de infraestrutura para alguns meses. Onde eu trabalho, na Klinikum Stuttgart, uma UTI foi separada em uma unidade para que pacientes que precisem de ventilação mecânica, broncoscopia, diálise e outros procedimentos em decorrência da Covid-19 possam ser atendidos sem colocar outros pacientes em risco.

Já sabemos que pacientes com sinais gripais sem gravidade devem ficar em casa. Entretanto, quando um paciente está mal a ponto de procurar o hospital, e ainda não sabe se tem ou não o novo coronavírus, ele será triado (é uma avaliação inicial pela enfermagem de sinais vitais). Posteriormente, será avaliado pelo médico da emergência. Se estiver bem, ele volta para casa. Caso sua condição de saúde precise de acompanhamento médico hospitalar, o paciente será internado. Se houver suspeita de infecção por coronavírus, será feito um teste.

Enquanto o paciente aguarda o resultado do exame, que fica pronto em algumas horas, seus sintomas serão tratados em uma enfermaria alocada para casos suspeitos de Covid-19. Lá, continuamos mantendo as medidas de isolamento e higiene necessárias, supondo que o resultado do teste possa ser positivo. Assim, evitamos a contaminação de outros pacientes.

Se o resultado do teste for negativo, ele será transferido para continuar o tratamento internado no departamento que cuida da doença dele, sem necessidade de permanecer isolado. Por exemplo: um senhor pode estar com falta de ar por causa da DPOC (doença pulmonar obstrutiva cronica) exacerbada, sem ter o vírus em questão.

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Já se o teste for positivo, ele é transferido para outra enfermaria, onde permanecem apenas os casos confirmados. Em situações graves, quando o paciente piora e apresenta necessidade de terapia intensiva, ele é transferido para uma UTI que trata apenas casos Covid-19 positivos.

Para essas situações, estamos deixando, pouco a pouco, um prédio inteiro à disposição. Mais um andar desse edifício, que até agora contemplava os cuidados paliativos, está sendo relocado. Assim, liberamos mais 18 quartos para acomodarmos pessoas com câncer que foram infectados pelo coronavírus, deixando-os distantes de outros pacientes também com câncer, porem sem o vírus.

No meu departamento, a oncologia, há pacientes com câncer que podem realizar tratamento ambulatorial. Isto é, eles saem de casa, recebem a quimioterapia num local chamado hospital-dia, e voltam pra casa no mesmo dia. Para evitar que essas pessoas, já fragilizadas, sejam contaminadas, foi criada mais uma triagem antes da entrada nesse setor.

Estamos atentos também para a possível redução no estoque de sangue disponível para transfusão. Isso porque menos pessoas irão doar nesse período de isolamento social. Inclusive, estamos ponderando adiar alguns tratamentos que exigem suporte transfusional, algo comum na oncologia.

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Para a organização dos plantões de enfermaria e do ambulatório, estamos contando com ajuda de todos departamentos. É um momento em que precisamos nos manter flexíveis na alocação do trabalho, porque o número de médicos necessário para cobrir cada departamento precisará ser readequado no decorrer de cada semana. Inicialmente, estávamos recebendo muitos pacientes sem sinal de gravidade no ambulatório (300 por dia), o que demandou o trabalho de muitos médicos. Sabendo que internaremos mais pacientes, adaptamos nossos atendimentos.

Nós decidimos que pessoas que estão bem, sem serem do grupo de risco, não devem se apresentar no hospital e precisam manter seu isolamento social até a melhora dos sintomas gripais. É uma forma de reduzirmos a demanda de atendimento ambulatorial em aproximadamente dez vezes (30 pacientes por dia). Com isso, os médicos podem focar sua atenção em pacientes com manifestação grave do novo coronavírus.

Mesmo com a ajuda dos médicos das mais diferentes especialidades, estamos prevendo um período com rotina cansativa. Quando inicialmente estruturamos os plantões para o prédio destinado à Covid-19, pensamos em turnos de oito horas. Mas não teríamos profissionais o suficiente. Assim, acabamos definindo turnos de 12 horas. Além disso, no decorrer das semanas, ampliamos a quantidade de médicos nos turnos de trabalho.

Ao entrar no quarto de um paciente com Covid-19, nós mantemos as medidas de higiene e proteção individual que tínhamos com influenza, o vírus da gripe, o que envolve vestir avental, máscara e luva. Com um diferencial: o uso dos óculos de proteção está sendo reforçado aqui para evitar a infecção através dos olhos.

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Após o término do trabalho nessa enfermaria, é realizada a troca da roupa hospitalar para possibilitar o trabalho em uma outra área. Na Alemanha, o médico utiliza roupa de uso exclusivo hospitalar (inclusive os sapatos) para evitar a contaminação na sua própria casa.

Todo dia, nosso diretor clínico se encontra com os demais diretores clínicos da cidade de Stuttgart. As medidas são tomadas em conjunto para otimizarmos os recursos disponíveis. Os funcionários do hospital, sem exceção, recebem atualizações diárias das novas diretrizes definidas para que a comunicação seja transparente e efetiva.

Houveram diversas medidas de planejamento. Foram recalculados os estoques de oxigênio, equipamentos de proteção individual, álcool gel e todo material necessário para atender as vítimas dessa infecção. Compramos inclusive mais máquinas que permitem a ventilação mecânica (após a intubação orotraqueal) para tratarmos os pacientes que evoluam com insuficiência respiratória. Não sabemos o que será necessário. Se for para pecar, que seja pelo excesso.

O hospital, aliás, está com grande quantidade de kits para extração de RNA viral, um método para diagnosticar o novo coronavírus. Estamos realizando os testes no próprio hospital. Os laboratórios daqui utilizam três tipos de técnicas diferentes para evitar que uma seja sobrecarregada ou que os kits não sejam entregues. Se isso acontecesse, não poderíamos firmar os diagnósticos.

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Como as escolas foram fechadas, e sabendo da necessidade de mão de obra, nosso hospital está disponibilizando creches e serviços de acompanhamento de crianças em estruturas menores para permitir a vinda ao trabalho. Todos (da área da saúde, faxina, transporte etc) são essenciais para podermos continuar cuidando dos pacientes. Sejam pacientes Covid-19 ou, como a maioria atualmente, de outras doenças. No mais, o estacionamento para os funcionários que virão de carro em vez de transporte público será pago pelo hospital.

Existe uma proibição de visita de familiares aos pacientes internados por diferentes problemas. Para que isso seja respeitado, há seguranças na porta dos hospitais e apenas enfermos ou funcionários portando crachá podem entrar. Lógico que há uma lista de exceção: permitimos visitas nos casos terminais, para gestantes, crianças etc. Porém, mesmo nesses contextos, em número limitado.

Teremos sofrimento, sem dúvida alguma. Eu me preocupo, por exemplo, com a consequência disso tudo para pacientes que recebem atendimento domiciliar. Com a demanda do coronavírus e as quarentenas decorrentes do vírus (que afetarão inclusive profissionais de saúde), os enfermeiros acabarão reduzindo as visitas residenciais. Diante disso, eu deveria dar alta para um paciente sem saber como ele vai ser cuidado em casa ou mantê-lo em um hospital que pode ser sobrecarregado a qualquer momento? Essa e diversas outras questões sociais passam na minha mente atualmente. São decisões difíceis.

O que é essencial: todos os dias temos novas informações, nos re-estruturamos e nos adaptamos à nova situação. Estamos agindo em conjunto com a calma e a cautela necessárias. Quando essa onda de coronavírus passar, poderemos avaliar onde acertamos e onde erramos. Até lá, acredito ser importante compartilharmos nossas experiências para não perdermos a oportunidade de salvar mais vidas.

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A médica Caroline Hidal (Foto: Arquivo pessoal/Divulgação)

*Caroline Hidal é médica formada na FAMERP, completou a residencia de clínica médica no Hospital de Base de Rio Preto, realizou o ano adicional de clínica médica no HCFMUSP e é atualmente residente de oncologia, hematologia e cuidados paliativos no Klinikum Stuttgart na Alemanha.

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