Em Veia Bailarina, da Editora Global (clique aqui para comprar), relato autobiográfico publicado em 1997, o escritor Ignácio de Loyola Brandão repete a palavra “tontura” 14 vezes. Foi o que ele sentiu, numa manhã chuvosa de 1996, ao se dirigir à cozinha para passar café. “O corredor balançou como navio”, descreveu. “Só pode ser labirintite.”
Não era. Cinco meses depois, um exame de ressonância magnética revelou um aneurisma cerebral. “Uma granada que pode explodir a qualquer momento”, comparou. Felizmente, o explosivo foi desativado a tempo. Prestes a entrar no centro cirúrgico, o escritor ainda brincou com o médico: “Doutor, quando abrir minha cabeça, não deixe meus personagens saírem”. “Pode deixar. Vou anestesiar todo mundo”, gracejou o neurocirurgião paulista Marcos Stavale.
Episódios como o de Loyola Brandão são raros. Um ponto fora da curva, garantem os especialistas. “Na menor parte dos casos, a tontura é um sinal de doença mais grave, como arritmia cardíaca ou derrame”, afirma Mário Edvin Greters, coordenador do Departamento de Otoneurologia da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF).
“Mas, quando esse sintoma é frequente, intenso ou vem acompanhado de dor de cabeça, perda de audição e formigamento nos membros, o indivíduo deve procurar um médico para investigar”, avisa o otorrino.
Mas, afinal, o que vem a ser a tontura? É sentir o mundo à sua volta rodopiar? É não conseguir andar em linha reta? É sentir a vista escurecer como se fosse desmaiar?
“Tontura, de forma geral, pode ser definida como uma ilusão de movimento. Ou seja, você sente um movimento que não existe. Essa ilusão pode ser em relação ao próprio corpo ou em relação ao ambiente ao redor”, explica Fernando Ganança, chefe do Ambulatório de Otoneurologia do Departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Tal sensação é a terceira queixa mais ouvida em consultórios médicos — só perde para dor e febre.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a tontura afeta, no dia a dia, ao redor de 30% da população, algo em torno de 2,3 bilhões de pessoas. Em alguns casos, ela é chamada de vertigem. Mas, apesar das semelhanças, tem lá suas diferenças.
“Quando a tontura adquire característica de rotação, do ambiente ou do próprio corpo, é considerada vertigem”, esclarece Ganança. Por essa razão, alguns profissionais também a chamam de tontura rotatória.
Tão comum quanto confundir tontura com vertigem é dizer que a tontura decorre de labirintite. Errado! Labirintite não é, sequer, a principal causa.
“O termo é dado à inflamação do labirinto, um órgão que existe dentro do ouvido e é responsável tanto pela audição quanto pelo nosso equilíbrio”, descreve a otorrino Nathália Prudêncio, especialista em tontura e zumbido pela Unifesp. “A labirintite é um quadro raro. Para ser diagnosticada, o paciente precisa apresentar, além da tontura, perda de audição e zumbido”, detalha.
Mas digamos que o labirinto em si tem muito a ver com tonturas. Problemas nessa estrutura, as labirintopatias, são responsáveis por 50% dos casos.
A mais prevalente delas é a vertigem posicional paroxística benigna (VPPB), mas há outras, como neurite vestibular (inflamação do nervo vestibular) e doença de Menière (distúrbio que provoca alterações no ouvido interno).
Um estudo recente feito na Grécia constatou que, de 60 pacientes atendidos em pronto-socorro com esse sintoma em seis meses, 20% apresentavam VPPB, 16% neurite vestibular e 3% doença de Menière, 35% saíram do hospital sem identificar a origem e outros 16% estavam com suspeita de um AVC.
“Em geral, os episódios de vertigem paroxística benigna são breves, porém intensos. Podem durar segundos e provocar náuseas e até quedas. São causados por movimentos bruscos como girar na cama de um lado para o outro ou abaixar a cabeça, ao sentar-se ou ao deitar-se”, esmiúça o neurologista Rodrigo Massaud, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Embora a VPPB seja uma doença do labirinto, não é uma labirintite — afinal, não há inflamação do órgão. O problema é puramente mecânico.
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O otorrino Márcio Salmito, coordenador do Núcleo de Tontura do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista, dá mais detalhes: “Em nosso labirinto, existem cristais de cálcio que servem, normalmente, para indicar ao cérebro a posição da nossa cabeça. Eles ficam em um local chamado utrículo. Se alguns desses cristais se soltam, por causa de uma pancada, por exemplo, podem entrar em um local errado, os canais semicirculares. Aí, quando o indivíduo mexe a cabeça, os cristais transmitem uma falsa sensação de movimento”.
Se o problema é mecânico, o tratamento também é. Chama-se manobra de Epley, em homenagem ao médico americano que a desenvolveu na década de 1980. Por meio de movimentos específicos realizados por otorrinolaringologistas, fisioterapeutas ou fonoaudiólogos treinados, os cristaizinhos são estimulados a voltar a seu local de origem.
“Infelizmente, muitos pacientes com VPPB não são submetidos ao tratamento correto porque recebem diagnósticos imprecisos como ‘crises de labirintite’”, lamenta Salmito. E, veja só, na maioria dos casos, o sujeito começa a se sentir melhor logo após a manobra.
Quando o mundo gira
Termos que fazem parte do glossário das zonzeiras
- Tontura
A rigor, é uma ilusão de movimento em relação ao próprio corpo ou ao mundo à sua volta. Há diversas causas. - Vertigem
É a sensação de mundo girando pra valer. Alguns médicos a chamam também de tontura rotatória. - Labirintite
É a inflamação do labirinto, minúsculo órgão do ouvido responsável pelo equilíbrio. Nem toda tontura é labirintite! - Lipotimia
Conhecida como pré-síncope, é o momento que antecede o desmaio. Vem junto de visão turva, náuseas… - Síncope
É a perda repentina de consciência. Se desmaiou ao sentir tontura, atenção: pode ser um problema mais grave.
Ok, metade dos casos de tontura vem de algum desequilíbrio no labirinto, mas e o restante? Aqui entra um extenso rol de doenças sem nenhuma relação direta com o ouvido, caso de problemas cardiovasculares, metabólicos, neurológicos, infecciosos e emocionais — sim, até mesmo ansiedade, estresse e fadiga mental podem acarretar tontura.
Como ataques de vírus e bactérias também chegam a provocar o sintoma, não é de estranhar que a infecção mais citada dos últimos tempos também bata ponto por aqui.
E, sim, a tontura pode ser uma manifestação da Covid-19, como aponta um levantamento canadense. Os pesquisadores calcularam que 12% dos pacientes apresentam essa sensação.
“A Covid-19 pode provocar crises vertiginosas de leves a incapacitantes. Quando a lesão não é compensada pela capacidade de recuperação funcional do sistema nervoso central, pode tornar-se inclusive crônica”, observa Ganança. Mais uma sequela para colocar na lista de agravos do coronavírus.
Quebra-cabeça médico
Diagnosticar a origem da tontura não é missão das mais fáceis. “Na verdade, devido às diversas possíveis causas, costuma ser um desafio clínico”, admite o otorrinolaringologista Jan Alessandro Socher, autor do livro Tonturas: O Que Fazer Agora? — 101 Perguntas de Pacientes, da Editora CRV (clique aqui para comprar).
“É um sintoma difícil de descrever”, concorda Massaud. Por essa razão, especialistas recomendam que, na hora da consulta, os pacientes tentem explicar o que entendem por tontura com riqueza de detalhes — e não desprezem outras sensações ou manifestações que por ventura aparecem em paralelo.
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A otoneurologista Lilian Felipe, professora do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Lamar, nos Estados Unidos, dá alguns exemplos práticos: a duração das crises de zonzeira, a intensidade dos sintomas (de leve a incapacitante), os horários mais frequentes, fatores de melhora ou piora, uso de remédios, presença de náuseas ou vômitos, entre outras chateações associadas.
“Tontura não é doença. É um sintoma. E, como tal, pode estar relacionada às mais diferentes patologias. Por isso, é importante explicar ao profissional o que você está sentindo e o que quer dizer exatamente com essa palavra”, orienta a médica e autora de Tonturas — Guia Prático de Avaliação e Tratamento, da Editora Revinter (clique aqui para comprar).
Pelos cálculos de alguns especialistas, em 80% dos casos a anamnese, palavra de origem grega que faz referência ao estado e histórico do paciente, é mais do que suficiente para decifrar a origem do problema. Nos 20% restantes, os profissionais precisam lançar mão de exames, tanto clínicos quanto complementares, para chegar ao diagnóstico correto.
Os testes em consultório incluem, entre outros, a avaliação dos movimentos oculares — o nistagmo, movimento involuntário e repetitivo dos olhos, pode ser indício de VPPB —, a aferição da pressão arterial e do ritmo cardíaco e a otoscopia, exame em que o médico inspeciona o interior da orelha com a ajuda de um aparelho.
Entre os métodos complementares, aparecem ressonância magnética do crânio, angiorressonância de veias e artérias intracranianas e teste de impulso cefálico por vídeo (V-HIT).
Ninguém está livre de sentir tontura ou vertigem. E é bem provável que você já tenha experimentado ou vá experimentar. Mário Greters, da ABORL-CCF, recorda um estudo feito em São Paulo em 2013 que já revelava que 42% da população da cidade havia relatado episódios em algum momento da vida.
No entanto, o risco e a prevalência do problema tendem a aumentar à medida que envelhecemos. Uma pesquisa italiana recente estima que até 20% das pessoas acima de 65 anos sofrem com tonturas no cotidiano. “Observamos que esse índice chega a 30% em indivíduos com mais de 60 anos e sobe para 50% a partir dos 85 anos”, conta Lilian.
Não é tão difícil entender o motivo. “Com o processo de envelhecimento, os sistemas responsáveis pelo equilíbrio corporal, o visual, o proprioceptivo e o vestibular, apresentam uma redução de suas funções. Além disso, a maioria das doenças que tem a tontura como sintoma, desde as cardiovasculares até as neurológicas, torna-se mais frequente com o avançar da idade”, explica a professora da Universidade Lamar.
Se, em matéria de faixa etária, já há um consenso a respeito, em questões de gênero a coisa é mais nebulosa e democrática: não dá para dizer que homens sofrem mais que mulheres — e vice-versa.
Mas o que fazer se uma tontura der as caras? Com a palavra, a otorrino Adriana Gonzaga Chaves, do Fleury Medicina e Saúde. A primeira providência é procurar manter a calma e encontrar um lugar seguro e confortável para sentar ou, se puder, deitar. Em seguida, escolher um ponto fixo qualquer no ambiente e olhar diretamente para ele por alguns minutos.
“Essa manobra se chama inibição por fixação visual e é a maneira mais rápida e eficaz de dar fim a um quadro de tontura”, diz a médica. Tomar um chá ou um refri para amenizar o mal-estar é desaconselhável. “Estimulantes como café e energéticos podem até agravar o problema”, alerta Socher. A mesma contraindicação se aplica a bebidas alcoólicas e derivados do tabaco.
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“Um dos piores reveses da tontura é a queda”, afirma Adriana. Por isso, alguns cuidados com a disposição e a segurança da casa são recomendáveis, especialmente aos idosos — vale tirar tapetes e instalar barras de apoio, por exemplo.
Outro ponto de atenção envolve os medicamentos. É que alguns podem ser ototóxicos, isto é, afetam o ouvido e o equilíbrio. Na dúvida sobre a origem da tontura, já sabe, melhor procurar o médico.
O espectro de causas é amplo e abrange desde algo relativamente simples, como a vertigem benigna, até um problema sério como um AVC. A apuração do problema pode começar com um clínico geral e, se necessário, ser direcionada a um otoneurologista, especialista no assunto.
Quanto ao tratamento, ele vai depender justamente do que está por trás da tontura. Assim, abarca de uma manobra de Epley em consultório a uma cirurgia delicada.
“Sentir tontura não é normal. Ela pode ser resultado de algo sem gravidade, mas também de doenças potencialmente fatais. Por essa razão, precisa ser investigada”, avisa a otorrino Norma de Oliveira Penido, do Hospital Nove de Julho, em São Paulo. E, vamos combinar, ninguém merece ficar com o mundo girando, girando e girando.