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Freud & cia no divã: os debates atuais sobre a psicanálise

Livro esquenta debate sobre a (falta de) base científica da disciplina que abriu caminho à investigação da mente e instigou mudanças culturais

Por Sílvia Lisboa, Fernanda Simoneto e Valentina Bressan (texto), Siamo Studio (design) e Thiago almeida (ilustração)
Atualizado em 18 set 2023, 16h03 - Publicado em 18 set 2023, 15h01
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Redes sociais fervilharam em uma intensa discussão sobre o valor científico da psicanálise (Ilustração: Thiago Almeida/SAÚDE é Vital)
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Um dos principais nomes da divulgação científica no país, a bióloga Natalia Pasternak se tornou uma figura ainda mais conhecida e presente nas telas e na vida dos brasileiros durante a pandemia, ao defender, de forma ardorosa e incansável, a adoção de medidas de proteção contra o vírus amparadas em pesquisas, como o distanciamento social e as vacinas.

Em um governo marcado por personagens e tiradas negacionistas, ela se tornou a voz da razão para desmistificar teorias conspiratórias e esclarecer a população sobre a falta de provas a favor de um suposto tratamento precoce.

Nos últimos meses, a presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC) voltou aos holofotes erguendo sua bandeira com o livro Que Bobagem! — Pseudociências e Outros Absurdos Que Não Merecem Ser Levados a Sério (Contexto)*, escrito ao lado de Carlos Orsi, um dos precursores do jornalismo científico na internet brasileira.

Mas a obra caiu como uma bomba em alguns círculos, sobretudo aqueles questionados pela dupla, causando barulho na imprensa e nas redes sociais.

A grande celeuma, porém, se deu com o ataque à psicanálise, uma das práticas incluídas em seu rol de “bobagens”.

Entidades, estudiosos e parte do público se surpreenderam ao ver a teoria criada por Freud ao lado de astrologia, curas energéticas, discos voadores e constelação familiar — esta incluída no mesmo capítulo dos “psicomodismos”.

O debate em si não é exatamente novo, apesar do calor das discussões.

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Chamar a psicanálise de pseudociência é, se não a principal, uma das mais frequentes críticas à disciplina desde os anos 1950, por mais que Freud e seus seguidores tenham aberto caminhos para os estudos sobre saúde mental e legado ideias para diversos campos do conhecimento, tornando-se uma das escolas mais influentes do século 20.

“Freud revelou há mais de um século que a complexidade humana vai além da transparência, da consciência e da racionalidade. Por que iríamos voltar atrás? Precisamos debater e ampliar a ciência para dar conta de quantificar e formar modelos para as realidades imateriais”, diz a psicanalista Maria Homem, professora da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo.

+ Leia também: Quais são os principais tipos de psicoterapia?

O livro de Pasternak e Orsi, contudo, rejeita os pressupostos do pai da psicanálise e sua aplicação como ferramenta terapêutica. O motivo? A falta de pesquisas robustas a atestar suas teses e benefícios.

Para entender a contenda, contudo, é inevitável partir primeiro para uma conversa filosófica, em que concepções complexas e por vezes até antagônicas entram em pauta.

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Afinal, o que torna uma disciplina ciência ou pseudociência? A resposta não é tão simples, haja vista as disputas epistemológicas que ganharam corpo no século passado e permanecem nos dias de hoje.

Uma das questões que vêm à tona nessa história é o chamado “problema da demarcação”, ou seja, a definição dos elementos que deveriam estar presentes em qualquer matéria que se afirme científica.

O pai dessa vertente, o austríaco Karl Popper, foi um dos maiores críticos das ideias freudianas. Para ele, a psicanálise podia ser “uma metafísica psicológica interessante, mas nunca foi ciência”.

Isso porque não atenderia ao princípio básico da falseabilidade, que permite a uma teoria ser provada incorreta ou não. Popper achava que Freud só procurava por evidências que confirmavam suas teses, construídas a partir de casos pessoais e experiências com pacientes.

Ocorre que, se por um lado esse argumento mantém certa atualidade, por outro a visão popperiana também foi colocada à prova e alguns de seus argumentos acabaram contestados (leia a entrevista completa com os autores de Que Bobagem! logo abaixo).

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Novas noções e paradigmas foram desenvolvidos dentro da filosofia da ciência, como os do americano Thomas Kuhn, que inclui a psicanálise entre as ciências, e os do sueco Sven Hansson, cujos preceitos foram usados para classificá-la como pseudociência.

“O problema da demarcação é que os critérios se tornam tão restritivos que você deixa de fora boa parte da biologia e da física”, afirma Rogério Severo, professor de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É como se essa lente deixasse a gente míope diante da complexidade do mundo.

Tal debate acabou migrando para uma profunda discussão sobre os propósitos, nem sempre claros, por trás do fazer científico. Inspirados por ninguém menos que Freud, intelectuais continuaram a alertar que a ciência poderia ser empregada como ferramenta de manutenção do status quo, do poder ou do lucro.

Vejamos: pesquisadores usaram e ainda usam o método científico para tentar refutar o aquecimento global ou os malefícios do cigarro eletrônico, a despeito de provas contrárias.

Pasternak e Orsi dizem levar em conta a necessidade de a ciência ser ancorada em ética e numa abertura à revisão crítica. Mas, para a proposta do livro, optaram por arvorar-se num conceito mais pé no chão: o da ciência como único meio capaz de apontar caminhos confiáveis, sobretudo quando isso envolve a saúde.

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Só ela poderia confirmar se uma vacina ou uma psicoterapia funcionam. Ainda assim, suas palavras sobre a psicanálise soaram controversas. “Eles cometem os mesmos erros de que acusam Freud e os psicanalistas: consideram apenas algumas questões e evidências para justificar uma tese”, opina Severo.

A contenda científica

Definições filosóficas à parte, o fato é que os autores de Que Bobagem! centram a artilharia nas teorias de Sigmund Freud e em seu método terapêutico, a “cura pela fala”, que influenciou boa parte das psicoterapias.

Antes do médico austríaco, problemas mentais eram considerados fruto de possessões, masturbação excessiva ou de um útero que se movia pelo corpo, como era o caso da “histeria”.

O francês Jean-Martin Charcot foi quem direcionou a atenção da medicina a esse termo, hoje abandonado, que agrupava diferentes condições psíquicas, e desbancou, com a ajuda do jovem Freud, a ideia de que era uma condição exclusiva de mulheres. O discípulo decidiu ouvir as “histéricas”, deixando-as falar livremente sobre o que sentiam, seus sonhos e associações de pensamentos.

Foi o primeiro a colocar o paciente e suas emoções no centro da sala.

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Pasternak e Orsi ponderam, em entrevista, que não estão questionando o papel de todas as psicoterapias.

Afirmam não ver valor na corrente psicanalítica e suas descendentes à luz do método científico. “A psicanálise reivindica a prerrogativa de curar doenças e explicar o mundo sem responder adequadamente às evidências contrárias e sem a preocupação de pôr suas hipóteses a teste em vez de apenas buscar instâncias confirmatórias”, argumenta o jornalista, que é diretor do IQC.

Contrariando a expressão clássica, para os autores, Freud não explica nada. Nem sua fórmula teria demonstrado, em estudos controlados, ser capaz de remediar os males da mente.

Jan Leonardi, presidente da Associação Brasileira de Psicologia Baseada em Evidências (ABPBE), entidade que saiu em defesa de Pasternak e Orsi ante as críticas ao livro, concorda.

As evidências que servem de base para os conceitos freudianos são “anedóticas”, ou seja, baseadas apenas na observação clínica. Após abandonar a neurologia para se dedicar à investigação do comportamento humano, Freud construiu suas primeiras noções por meio das sessões com seus pacientes — uma elite vienense em seu divã.

Naquela época, claro, não havia a exigência de estudos monitorados com grande número de voluntários, aptos a eliminar vieses do pesquisador e dos resultados. Que Freud adotasse essa metodologia empírica, vá lá — seus principais escritos datam do final do século 19 e início do 20.

Mas Pasternak e Orsi consideram que seus seguidores ainda se baseiam quase exclusivamente nessa tática em defesa da escola.

“Para saber se o modelo clínico é eficaz ou não, é preciso realizar pesquisas que avaliem dados de maneira sistemática e objetiva, minimizando o papel de visões e experiências pessoais”, sublinha Leonardi.

Também membro-fundador da ABPBE, o doutor em neurociências Daniel Gontijo afirma que, sob a ótica científica, há muitas lacunas em aberto na psicanálise: “Se ela dispõe de fatores específicos que beneficiam mais os pacientes do que outros tipos de abordagem, nós não sabemos”.

O psicólogo prossegue: “Temos de entender melhor em que medida eles ajudam e por quais motivos. Para isso, precisamos de mais experimentos controlados, só que parece haver uma resistência por parte dos psicanalistas”.

As origens da escola

A psicanálise nasceu junto com o século 20, apresentada ao mundo com a publicação do livro A Interpretação dos Sonhos (L&PM)*, de Sigmund Freud, em 1900.

Em 1885, ainda antes de lançá-la como teoria estruturada, Freud passou um ano acompanhando o médico Jean-Martin Charcot, em Paris, onde pôde presenciar pacientes “histéricas” e confirmar as impressões de que a origem da condição era mental, e não física.

Dez anos depois, Freud publicou Estudos sobre a Histeria (Companhia das Letras), em que aborda o caso de Anna O: é a primeira aplicação do método da terapia pela fala.

A maior mudança que Freud trouxe para os estudos sobre o comportamento e o sofrimento humano foi a compreensão de que parte das nossas experiências é guardada em um nível inacessível da mente, o inconsciente.

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Clique para ampliar (Ilustração: Thiago Almeida/SAÚDE é Vital)

A dificuldade de estudar psicoterapias

No livro The Great Psychotherapy Debate (Routledge)*, os autores Bruce Wampold e Zac Imel se debruçaram nas evidências sobre a psicoterapia e concluíram não haver dúvidas de sua eficácia.

Mas reconhecem ser um desafio, não restrito à psicanálise, desenhar estudos que comparem quão efetivas são diferentes abordagens diante do mesmo transtorno mental, devido à diversidade de variáveis envolvidas.

A empatia do terapeuta, a singularidade do paciente e seus sintomas e a relação entre ambos interferem no sucesso de um tratamento. Como saber o que contribuiu para o êxito ou fracasso das consultas?

Outro obstáculo na aproximação entre estudos-padrão e a prática psicanalítica é a própria noção de resultado ou melhora. Em alguns casos, como aqueles de pessoas que sofrem com fobias, pode ser mais fácil medir o efeito de um tratamento — o sujeito consegue realizar a ação que temia, e bingo!

Mas nem sempre quem procura uma terapia tem uma questão bem definida a resolver.

Para a psicanálise, há uma particularidade adicional: mesmo pessoas que apresentam sintomas de depressão, ansiedade ou outras desordens não têm, necessariamente, uma doença mental. “A psicanálise não trabalha com a ideia de transtornos porque isso implica uma moralidade”, explica o psicólogo Paulo Beer, autor de Psicanálise e Ciência: Um Debate Necessário (Blucher)*.

Conceitos freudianos que se popularizaram, como o inconsciente e a repressão, também são alvos do livro. Para Orsi e Pasternak, eles não encontram respaldo na neurociência e foram postulados em cima de fabricações e distorções semeadas pelo pai da psicanálise e alimentadas por seus discípulos.

Mas, antes que se condene Freud por suas ideias, é preciso lembrar que o próprio pensador reviu e mudou ideias ao longo da carreira.

“Não queremos afirmar que a psicanálise”, ele escreveu , “desvendou os últimos mistérios da vida psíquica humana, mas que ela de certa forma destravou o portão que leva a essa vida interior (…) e deixou penetrar um pouco de luz nessa escuridão (…) Um esforço posterior possivelmente nos mostrará que apreendemos a forma dessas coisas de uma maneira não totalmente correta.”

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Ainda que não seja um nicho obscuro no meio do cérebro, o inconsciente talvez seja a noção mais impactante e atual do médico judeu vienense.

Repensada por pesquisadores de várias áreas do conhecimento, ela abriu portas para descobertas que demonstraram que grande parte dos processos cognitivos não ocorre com a consciência ligada.

Até mesmo o filósofo Adolf Grünbaum, que fez as críticas mais duras à psicanálise nos anos 1980 e é referenciado no livro, reconheceu como válidos os experimentos do psicólogo Howard Shevrin, que passou anos se correspondendo com ele e criando métodos para identificar como estímulos inconscientes influenciavam manifestações conscientes.

“Pode-se criticar o estudo de Shevrin, claro, ou falar que ele pode ser ampliado. O problema é que os autores do livro nem sequer levam isso em consideração. Eles não atualizaram o debate”, interpreta Beer.

Além de repudiarem o fato de se ter colocado a psicanálise no mesmo sarrafo em que constam horóscopos e ETs, estudiosos do tema acreditam que Pasternak e Orsi derrapam em inconsistências ao descrever provas contrárias a essa corrente.

Em um dos trechos, ao contarem a história de Pankejeff, paciente de Freud apelidado de “Homem dos Lobos”, os autores citam um estudo de Cristina Alberini e Alessio Travaglia para justificar que crianças menores de 18 meses não registrariam suas experiências na memória, o que colocaria em xeque o caso em que Freud relacionou o sintoma obsessivo de Pankejeff a uma lembrança reprimida da primeira infância.

Mas, ao ler o mesmíssimo estudo, nota-se que ele corrobora a hipótese freudiana de que eventos ocorridos nos primeiros anos de vida e logo esquecidos podem impactar comportamentos adultos.

Fora isso, desde o início dos anos 2000, um punhado de pesquisadores decidiu aproximar a psicanálise da neurociência, criando um novo ramo, a neuropsicanálise, não abordada em Que Bobagem!.

Usando um aparelho de ressonância magnética, Eric Kandel, Prêmio Nobel em 2020 por suas descobertas sobre a comunicação entre os neurônios, identificou a existência de conteúdos latentes dolorosos que despertam nossas emoções antes mesmo de nos darmos conta delas conscientemente.

O especialista teria demonstrado, com um recurso tecnológico de ponta, a influência do inconsciente em regiões do cérebro associadas às sensações de medo e angústia.

Outro cientista que acolheu ideias de Freud e companhia é o neurologista português António Damásio, que investiga a intersecção entre corpo e mente e o papel das emoções na memória e no aprendizado.

O mesmo pode ser dito de um dos neuropsicólogos mais influentes hoje, o sul-africano Mark Solms, que tem recorrido ao conceito de repressão psíquica para entender seus reflexos na cognição de vítimas de AVC e paralisia.

Pois é, mais de 100 anos depois, concepções de Freud seguem sendo revisitadas para elucidar sintomas de uma lesão cerebral. “A medicina sempre foi uma arte que precisava da melhor ciência para funcionar. A psicanálise se serve da ciência, mas, na hora da clínica, ocorre uma ruptura entre o geral explicado pela ciência e aquilo que é único em cada caso”, diz o psiquiatra Mario Eduardo Costa Pereira, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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Apesar de inúmeras revelações sobre o cérebro, a mente humana permanece uma caixa de mistérios. E uma história envolvendo o famoso Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria, ilustra os desafios da ciência nesse terreno.

Em 2013, o então diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA, Thomas Insel, anunciou que não utilizariam mais a “bíblia da psiquiatria”.

Alegou que os diagnósticos do manual eram baseados em um consenso sobre sintomas, em vez de medidas laboratoriais precisas, e lançou a entidade em uma empreitada para criar novos critérios, com base principalmente em achados da genética e da neuroimagem.

Mas o psiquiatra abandonou a iniciativa dois anos depois. Ele admitiu que, apesar dos “espetaculares avanços” na neurociência, as descobertas ainda não se traduziam em melhoras na vida dos pacientes.

A subjetividade inerente a todos nós parece se impor como um limite a pretensões objetivas. Nesse sentido, cuidar de alguém seria tudo, menos uma ciência tão exata.

Não há dúvida de que estudos bem-feitos serão sempre necessários para validar teorias e tratamentos, mas talvez nunca possamos abrir mão nem da dose de sensibilidade menos cartesiana reivindicada pela psicanálise nem do olhar cético de seus principais críticos.

Questões em aberto

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Clique para ampliar (Ilustração: Thiago Almeida/SAÚDE é Vital)

Entrevista com os autores de Que Bobagem!

No livro, vocês mencionam que a psicanálise é considerada uma pseudociência desde a década de 1950, mas esta é uma questão em disputa, certo? Por que incluí-la entre as bobagens?

Desde Karl Popper, a maioria dos filósofos que se debruçou sobre o chamado “problema de demarcação” – como separar ciências de pseudociências – foi unânime em colocar a psicanálise “do lado de lá”, do lado das pseudociências. Além de Popper, dá para citar Frank Cioffi, Mario Bunge, Massimo Pigliucci e Maarten Boudry. Nessa tradição, uma exceção é Adolf Grunbaum, para quem a psicanálise não cumpre o critério de pseudociência estipulado por Karl Popper. Mas, na mesma obra em que critica o critério de Popper, Grunbaum conclui que a justificativa epistêmica da psicanálise – em linhas gerais, as razões para levar a teoria psicanalítica a sério – é “extremamente fraca” e circular, o que invalida a teoria.

Qual é o conceito de ciência que vocês consideram no livro para classificar a psicanálise como pseudociência? 

Nosso principal guia é o conceito de atitude científica do filósofo Lee McIntyre: ciências legítimas são praticadas por comunidades cujos membros estão abertos a revisar, ou mesmo a abandonar, suas teorias de acordo com novas evidências produzidas pela investigação da realidade, e pela crítica informada dos pares. Não usamos, portanto, o conceito clássico de Popper. Quanto à definição de pseudociência, usamos um conceito prático – isto é, sem buscar um grande rigor filosófico, porque os filósofos da ciência ainda hoje debatem o problema da demarcação – de algo que busca o prestígio social e intelectual da ciência (que inclui, por exemplo, reivindicar a prerrogativa de curar doenças e explicar o mundo) sem fazer o trabalho que se espera de uma ciência: crucialmente, sem responder de modo adequado às evidências contrárias e sem a preocupação de pôr suas hipóteses a teste (em vez de apenas buscar instâncias confirmatórias).

No livro vocês citam “psicoterapias psicodinâmicas” de forma ampla e reivindicam que deveriam ser avaliadas com regras diferentes. Vocês estão se referindo a todas as psicoterapias? Qual seria a melhor forma de estudá-las?

Não estamos, claro, nos referindo a todas as psicoterapias, isso seria irresponsável (e falso). Referimo-nos às descendentes assumidas de Freud. A família “psicodinâmica” inclui um grande número de propostas terapêuticas que, de alguma forma, reivindicam o trabalho de Sigmund Freud como ponto de partida. A categoria vai desde a psicanálise clássica até as inúmeras modalidades psicodinâmicas criadas nos Estados Unidos, passando por terapias junguianas, lacanianas etc. Existem até mesmo propostas terapêuticas ecléticas que misturam conceitos psicodinâmicos aos de outras linhas, como as das abordagens cognitivo-comportamentais. A família psicodinâmica tem a tradição de se basear em elaborações teóricas construídas a partir de estudos de caso – e de considerar que esse método é suficiente para gerar conhecimento psicoterapêutico. Essa é a reivindicação especial que fazem, de que casos e reflexão teórica sobre casos bastam. Com isso, buscam isentar-se do dever de conduzir estudos científicos devidamente controlados para testar e evoluir suas teorias.

Em uma das páginas, vocês citam trechos de um livro que embasa as críticas à psicanálise, The Great Psychotherapy Debate, mas essa obra diz que as psicoterapias de modo geral são muito efetivas. Vocês consideram que elas não são efetivas porque não passaram pelo escrutínio de estudos controlados, com grande número de pacientes, com grupo controle etc? Não é próprio da ciência formular modelos para testar eficácia? Não existiria mais de uma forma de verificar eficácia?

Em nenhum momento dizemos que psicoterapias, em geral, são ineficazes. O ponto principal feito pelos autores de The Great Psychotherapy Debate é o de que os efeitos comuns, ou seja, os benefícios que podem ser atribuídos à situação terapêutica, são, em geral, muito mais significativos do que os efeitos específicos, que podem ser atribuídos à técnica terapêutica utilizada. Isso significa que progresso terapêutico não serve como argumento a favor da teoria psicanalítica, já que tratamentos baseados em outras teorias funcionam tão bem ou melhor. Quando estudos são conduzidos para tentar estabelecer se algum sistema teórico produz resultados superiores aos demais, em geral a vantagem acaba recaindo sobre as terapias cognitivo-comportamentais, não sobre as psicanalíticas ou psicodinâmicas. Quanto ao modo de teste, a melhor forma de testar uma terapia é o teste clínico randomizado e controlado, a fim de evitar que vieses dos pesquisadores ou o mero acaso acabem gerando resultados espúrios. Há desafios importantes na construção desse tipo de teste para psicoterapias, mas essa construção pode ser feita, como tem sido.

Outra crítica do livro mira Freud, que teria baseado sua teoria em cima de casos clínicos que na verdade seriam fracassados e em conceitos que não param de pé (inconsciente). Mas, desde a publicação, as obras de Freud estão sempre sendo debatidas, algumas teorias foram postas de lado, houve reconhecimento de alguns acertos e erros até pelo próprio Freud. Freud estaria mesmo neste Olimpo intelectual ainda hoje?

Aparentemente, dada a recepção do livro, sim. E os grandes teóricos da psicanálise que vieram depois dele (como Melanie Klein e Lacan, por exemplo) seguiram cometendo os mesmos erros – construindo elaborações teóricas complexas com base apenas em estudos de caso e, pior, fazendo afirmações impossíveis de testar, cujo único valor é retórico e doutrinário. A psicanálise não evolui como uma ciência – substituindo modelos menos precisos da realidade por outros melhores – mas fragmenta-se em correntes e dissidências. Nesse aspecto, está mais próxima de uma ideologia ou de uma religião.

Por que não abordaram no livro o fato de que qualquer um pode se tornar um psicanalista. Essa não é uma preocupação válida?

A questão da formação psicanalítica tem sua relevância – ainda mais por ocorrer fora do sistema acadêmico, o que imuniza ainda mais as teorias ensinadas contra qualquer forma significativa de teste ou crítica – mas não nos pareceu crucial para o argumento que buscávamos construir.

O livro também critica a importância vital do analista, sua experiência. Mas isso não é importante em qualquer área da saúde?

É importante, mas não é o vital. Um médico iniciante ou desajeitado, ou mesmo mau humorado, ainda pode beneficiar o paciente, se pedir os exames corretos e prescrever a conduta adequada. Um psicanalista, por sua vez, não tem base teórica válida para oferecer nada além de experiência, compaixão e simpatia. Para citar um caso que ficou de fora do livro: Dylan Evans foi um importante lacaniano, autor de um dicionário de conceitos de Lacan (An Introductory Dictionary of Lacanian Psychoanalysis), que num dado momento decidiu abandonar a psicanálise ao notar que os pacientes que tratava seguindo as prescrições de Lacan pioravam – e os que tratava usando apenas simpatia e bom-senso, melhoravam.

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