No tribunal dos colaboradores do câncer, o papilomavírus humano, mais conhecido pela sigla HPV, já não responde apenas por danos a um único órgão ou por uma ameaça exclusiva ao sexo feminino. O micro-organismo sexualmente transmissível continua responsável pela esmagadora maioria dos tumores de colo de útero, um dos campeões em incidência entre as mulheres.
É preciso lembrar que nem todos os HPVs estão mancomunados com o câncer – hoje se sabe que os tipos 16 e 18 são os principais envolvidos. “E o contato com o vírus, mesmo que seja um de alto risco, não significa que haverá um tumor”, tranquiliza a bióloga Paula Rahal, da Universidade Estadual Paulista, em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo.
Predisposição genética para o câncer, baixa imunidade e tabagismo pesam na conta que resulta no problema. “Até 80% das mulheres infectadas eliminam o HPV espontaneamente em dois anos sem ter sintomas”, conta a ginecologista Cristina Helena Rama, do Hospital e Maternidade Leonor Mendes de Barros, na capital paulista.
Mas, claro, não dá para confiar na sorte, sob pena de cair no grupo das que irão colher retaliações mais graves. “Daí a necessidade de se submeter a exames de rotina, como o papanicolau, que identificam alterações no útero”, orienta Cristina. “Do momento da infecção ao surgimento do câncer podem transcorrer até 20 anos”, avisa Paula.
Estendendo a mensagem aos outros alvos do HPV, qualquer sinal de algo errado na boca, na garganta ou no pênis merece policiamento médico. Aliás, um estudo também associou esse vírus ao câncer de mama. Mas os especialistas ouvidos por SAÚDE! acreditam que é cedo para fazer essa última acusação.
Prevenção
De qualquer modo, antes de procurar o intruso, você deve saber o que está ao seu alcance para se esquivar dele. Parte da resposta resvala nos princípios do sexo seguro. “Apesar de não ser 100% eficaz no caso do HPV, a camisinha ajuda a evitar a infecção”, diz Cristina. O problema é que o preservativo é deixado para a hora da penetração.
E mais: o próprio saco escrotal, por exemplo, pode portar o vírus. Por mais careta que soe, quanto menos parceiros alguém tiver, menor o risco do contágio. Também é crucial cortar outros fatores pró-câncer. “Para os tumores de garganta, há um efeito combinado entre o cigarro, o álcool e a presença do vírus”, afirma Carvalho.
A fórmula mais segura e eficiente seria a imunização, por enquanto destinada às meninas entre 9 e 13 anos. Especialistas já avaliam a aplicação em outras faixas etárias e a liberação para os homens – nos Estados Unidos, um dos imunizantes foi aprovado para a ala masculina visando à prevenção das verrugas genitais.
“Dos tumores associados ao vírus, cerca de 70% dos de colo de útero, 80% dos de amígdala e 40% dos de pênis estão relacionados aos HPVs 16 e 18, os contemplados pelas vacinas disponíveis”, diz a bióloga Luisa Lina Villa, do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo. A despeito dos estudos em andamento e da discussão custo/benefício, o maior pesadelo do HPV será sua condenação a um futuro com vacina para todo mundo.
Entra um vírus, sai um câncer
Entenda por que alguns tipos de HPV, como o 16 e o 18, provocam tumores no colo do útero, na boca, na garganta, no pênis…
1. Basta o contato sexual – ou uma carícia mais ousada – e o vírus ganha o corpo do novo hospedeiro. Logo, ele se desloca até um local perfeito para o bote – uma mucosa como a do útero ou a da garganta. Uma vez ali, despeja seu material genético dentro de uma célula. Então, o DNA do HPV se mistura com o da célula que infectou.
2. Com esse casamento dos genomas do vírus e da célula, o micro-organismo deixa de se reproduzir, mas consegue fabricar duas proteínas, a E6 e a E7. Elas são capazes de anular o trabalho de dois genes humanos, o p53 e o pRb, que zelam pelo bom funcionamento do nosso código genético.
3. Desativados, esses genes não enviam a mensagem de que a célula defeituosa deve ser destruída. Dessa forma, essa espécie de aberração celular se multiplica, gerando outras unidades imperfeitas. E então surge o tumor, que, se não for eliminado a tempo, fatalmente cresce e se espalha.
A família HPV
Cutâneos: como a classificação sugere, essa turma de papilomavírus humanos, da qual fazem parte os tipos 1 e 2, invade a pele e está por trás do surgimento de verrugas, especialmente nas mãos e nos pés.
Genitais: são os HPVs transmitidos sexualmente. Há os de baixo risco, como os tipos 6 e 11, que provocam verrugas – bem incômodas, é verdade – no pênis, na vagina ou no ânus. E completam o bando os vírus de alto risco, caso dos tipos 16, 18, 31 e 45, estreitamente associados com o aparecimento do câncer, sobretudo o de colo de útero.
Sintomas inusitados do HPV
Boca: lesões avermelhadas na língua, nos lábios ou nas mucosas das bochechas que aparecem do nada e não vão embora. Visitas periódicas ao dentista ajudam a investigar toda a cavidade bucal.
Garganta: irritações na faringe ou nas amígdalas – esse sintoma pode ser semelhante ao de uma infecção bacteriana -, além de incômodos ou dores persistentes ao engolir um alimento.
Colo do útero: dores no abdômen, desconforto ao urinar ou o aparecimento de secreções na vagina.
Vagina e vulva: manchas avermelhadas ou lesões na porta de entrada do aparelho reprodutor feminino, além de coceira intensa.
Pênis: lesões de tons avermelhados na glande, a cabeça do pênis, bem como feridas e verrugas, acompanhadas de coceira.
Ânus: coceira recorrente, surgimento de pequenos nódulos, sangramento e dores sobretudo ao evacuar.
Outros micróbios que causam câncer
Estima-se que cerca de 20% dos casos de câncer do globo sejam resultado do ataque de um parasita. Conheça outros exemplos de possíveis associações
Vírus do herpes: linfoma e tumores de nasofaringe
Vírus das hepatites b e c: câncer de fígado
Helicobacter pylori (bactéria): câncer de estômago
Schistosoma mansoni (verme): câncer de bexiga
Mycobacterium tuberculosis (bactéria): carcinoma de células escamosas (pele, garganta, esôfago, bexiga, útero…)
Antes tarde do que nunca
O ideal é que todo estrago desencadeado pelo HPV fosse remediado antes de virar um tumor. No entanto, nem sempre é possível surpreender o problema em fase tão precoce, seja no útero, seja na garganta… Se uma lesão detonada pelo micro-organismo for identificada a tempo, medicamentos, cauterizações ou pequenas cirurgias são capazes de conter a ameaça.
Quando, porém, o vírus sai de cena e abre alas ao câncer, os médicos podem lançar mão, dependendo da área acometida, de procedimentos cirúrgicos, quimio ou radioterapia. “Nos tumores de cabeça e pescoço, a presença do vírus costuma ser um sinal de uma melhor resposta ao tratamento”, conta o cirurgião Fernando Dias. E o velho lema continua valendo: quanto mais cedo for feito o diagnóstico, maior a chance de cura.