Ao falar sobre gestão de medicamentos na rede pública, podemos destacar dois pontos. Primeiro, a compra periódica de remédios já usados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e, segundo, os processos que envolvem a decisão de incorporação de novos medicamentos até o momento em que eles passam a ser disponibilizados.
Vamos começar com as dificuldades relacionadas à aquisição recorrente de medicamentos. O ano de 2019 começou com uma grave crise de desabastecimento que deixou cerca de 2 milhões de pacientes sem tratamento no sistema público de saúde, segundo o Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). Os remédios esgotados eram para doenças como câncer de mama, leucemia em crianças, inflamação, entre outras.
Para os pacientes oncológicos afetados por essa situação, interromper o tratamento no meio é como jogar fora a terapia prévia, porque o tumor pode progredir (ou seja, volta a evoluir). E há o risco de o paciente criar resistência ao medicamento, que não terá a mesma eficácia quando ele finalmente retomar seu uso.
Diante disso, a pessoa com câncer fica extremamente vulnerável e impotente, enquanto o profissional também não sabe quando haverá um novo abastecimento. O médico se vê obrigado a improvisar e buscar alternativas – que muitas vezes não existem, ou são inferiores e não seguem os protocolos.
A resposta do porquê falta medicamento não é simples. Para ter uma ideia do que está acontecendo, é necessário entender mudanças recentes nas compras de medicamentos pelo SUS. Até então, eram feitas com contratos de até três meses, conforme determinado pela gestão anterior do Ministério da Saúde, sob o comando de Ricardo Barros (PP). A partir de agora, segundo o atual ministro da pasta, Luiz Henrique Mandetta (DEM), os contratos serão de até um ano para a maioria dos produtos, a fim de evitar novos desabastecimentos na rede pública. Não há garantia que as mudanças irão acabar com o problema, mas o objetivo da proposta é esse.
O desabastecimento é multifatorial e, embora cada gestão do Ministério da Saúde atribua a responsabilidade a algum aspecto, acredita-se que três fatores exercem influência nisso:
- As excessivas burocracias que envolvem os processos de compra
- O fato de vários remédios deixarem de ser produzidos no Brasil – o que exige trâmites de importação caros e complexos
- O alto custo de alguns tratamentos, como é o caso das terapias oncológicas em geral
Outra questão importante é que, com as mudanças nos grupos dirigentes da política pública que ocorrem quando um novo governo assume, muitos processos são modificados. Isso contribui para atrasar os trâmites iniciados na gestão anterior.
Mas os grandes desafios que geram o desabastecimento não se restringem aos medicamentos já fornecidos pelo SUS.
É verdade que, em si, o processo de incorporação de uma nova droga segue um processo transparente e de conhecimento público. Os impasses começam depois disso até a efetiva oferta (negociação de preços, logística de distribuição para os estados e disponibilização para o paciente).
Durante essas etapas pós-incorporação, que deveriam ocorrer em 180 dias, não há prestação de contas e os fluxos são bem nebulosos, além de, na maioria dos casos, não cumprirem o prazo para início do oferecimento, estipulado pela Lei 8.080/90.
Os valores excessivos dos remédios para câncer são uma realidade no mundo todo, já que estamos falando de tratamentos para uma doença que demanda inovações e tecnologias de precisão. Uma grande preocupação da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc) é com o congelamento dos gastos públicos em saúde pelos próximos 20 anos, determinada pelo governo Temer em 2016.
Considerando a projeção de quase 1 milhão de pacientes com câncer no Brasil em 2040, como será possível tratar nossa população – fornecendo os medicamentos já cobertos pelo SUS e incorporando novas tecnologias oncológicas – se temos um orçamento tão limitado?
A resposta para a falta de medicamentos oncológicos no SUS está no cerne desse debate. Um dos papéis das sociedades médicas é trazer à tona e esclarecer esses assuntos, a fim de empoderar todos a exigir seus direitos.
Uma população mais consciente e informada cobra por mais transparência das instituições de saúde, exigindo que todo o processo seja conhecido do início ao fim.
*Dr. Roberto Gil é oncologista e diretor da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc)