Assim como se vão os amores e as estações do ano, nossa voz também pode nos deixar. Há uma série de fatores que levam a tal situação, mas meu texto não é sobre isso. Meu texto é sobre abundância, resiliência, propósito e amor.
Em 2011, minha mãe foi diagnosticada com câncer de laringe em estágio avançado. Lembro como se fosse hoje o momento em que nos sentamos em um agradável restaurante na frente do mar para discutir os próximos passos de algo não tão agradável. Ela tinha 39 anos. Eu, 18. Ambos estávamos com medo.
Eu aprendi muito cedo que a coragem não é a ausência do medo, mas o ímpeto para enfrentá-lo. Assim como aprendi que não adianta perguntar ao universo o porquê de determinada situação acontecer com a gente, mas refletir sobre o que ela tem para nos ensinar. Não é um processo fácil, mas é possível. Minha mãe fez radioterapia e quimioterapia, as quais não se mostraram suficientes, incorrendo na necessidade da cirurgia. Uma cirurgia onde já sabíamos que ela entraria calada e sairia muda. Tal procedimento salvou sua vida, porém provocou mutilações irreparáveis, tanto físicas como psicológicas.
Como continuar vivendo a partir dali era a grande questão. Estávamos todos fragilizados: ela, por perder sua identidade; eu, por sentir o sofrimento da pessoa que mais importa para mim e pouco poder fazer a respeito; meu padrasto, por ver a mulher da sua vida quase morrer.
Nos unimos. Nos curamos. Nos amamos. E, sobretudo, continuamos a sorrir. Inclusive ela.
Tudo isso ocorria ao mesmo tempo em que eu iniciava a graduação em Administração Pública. Lembro do quão orgulhosa minha mãe ficou com meu ingresso na universidade pública. Ela não teve essa oportunidade. Aliás, ninguém dos meus ancestrais maternos teve.
Talvez essa mescla de gratidão com a vontade de orgulhar minha mãe tenha sido uma das razões que me deram forças para sempre seguir em frente, a despeito da fragilidade emocional. Em 2012, iniciei um estágio em uma organização da sociedade civil, o que você deve conhecer por ONG, e me apaixonei pela possibilidade de trabalhar com um propósito genuíno, que transcende o individual e olha para o coletivo. Na época eu não sabia, mas foi essa experiência que me abriu caminhos para o que vou contar a seguir.
Sempre fui uma pessoa pensativa. Isso se acentuou ao longo da faculdade, do meu estágio e de outras experiências. Minha criticidade chegou ao ponto de abstrair toda a dor e luta que tivemos enquanto família para pensar nos outros brasileiros que passam pela mesma jornada da minha mãe, porém com alguns agravantes: fome, analfabetismo, distância entre sua moradia e o hospital, abandono da família, dependência de programas sociais, para citar alguns.
Não existe uma balança para pesar qual jornada é mais sofrida. Cada ser humano sente de uma forma. Por outro lado, não é difícil ligar os pontos e afirmar que os fatos que citei anteriormente tornam qualquer caminho mais tortuoso. Minha mente funcionava da seguinte forma: se eu tive acesso a tantas coisas boas em minha vida, é meu dever fazer algo para deixar o mundo um pouco melhor.
Foi assim que a ACBG Brasil (Associação de Câncer de Boca e Garganta) começou a tomar forma. Sempre digo que meu papel foi plantar uma semente e estimular minha mãe e os colegas do grupo que frequentamos a acreditar que era possível fazer mais. Não só em uma perspectiva idealista de mudar o mundo, mas trazendo aspectos racionais. E deu certo. Em janeiro de 2015, a associação foi fundada.
A ACBG Brasil é uma organização da sociedade civil, de direito privado, sem fins lucrativos, que trabalha em prol dos portadores de câncer de cabeça e pescoço e seus familiares em todo o Brasil. Nossa missão é dar voz a quem não tem. Entendemos por voz não só a função básica que minha mãe perdeu, mas o conjunto de direitos que tais pacientes devem ter acesso.
O câncer de cabeça e pescoço é mutilador. A pergunta do título remete à experiência que vivi com minha mãe, mas esse conjunto de tumores não se resume a isso. Você já se imaginou sem olhos? Ou sem nariz? E sem a mandíbula? Enquanto eu escrevo, milhares de pessoas sofrem com essas mutilações em função de um câncer.
Para alcançar nossa missão, definimos quatro eixos de ação:
- Advocacy: defesa de pautas de interesse aos pacientes e profissionais da saúde
- Reabilitação: implementação de projetos que devolvem a dignidade a sobreviventes que precisam de algum tipo de reabilitação
- Inclusão social: promoção e criação de grupos e corais de pacientes no país
- Informação: elaboração de campanhas educativas acerca do câncer de cabeça e pescoço
Atualmente, a ACBG Brasil é uma organização respeitada no Brasil e no mundo. Em território nacional, somos qualificados pelo Ministério da Justiça como uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Também somos reconhecidos pelo estado de Santa Catarina e pelo município de Florianópolis como uma organização de Utilidade Pública.
Para além das fronteiras brasileiras, fomos selecionados para o Programa de Líderes de Comunidades do Facebook, que inclui líderes de diferentes partes do mundo, e também fomos finalistas do prêmio .ORG Impact Awards.
Para saber mais sobre todo esse trabalho, te convido a assistir ao nosso vídeo institucional e ao dos pacientes. Caso queira acompanhar a ACBG de perto, temos uma página e um grupo no Facebook que, juntos, somam mais de 10 mil pessoas, entre pacientes, familiares e voluntários. Temos também outros vídeos incríveis em nosso canal do YouTube, bem como fotos em nosso Flickr e Instagram.
Espero que esse relato te ajude a refletir sobre a vida, que, de fato, é um sopro. Aproveite cada momento, valorize as pessoas que ama, corra atrás dos seus sonhos, veja abundância ao invés de escassez e, sobretudo, faça sua voz ser ouvida. A ACBG foi e continua sendo um processo de cura para mim e para minha mãe.
Ao passo em que transformamos vidas, transformamos a nós mesmos.
*Gabriel Marmentini é bacharel em Administração Pública, mestre em Administração e doutorando em Administração (UDESC/ESAG). É também empreendedor social na ACBG Brasil e no Politize!.