Desde que o uso das máscaras passou a ser recomendado para conter a Covid-19, muita desinformação sobre o tema apareceu. Mais recentemente, uma imagem divulgada nas redes sociais acusa o acessório de aumentar o risco de câncer de pulmão, por privar as células do órgão de oxigênio. Essa mentira cita inclusive um cientista que foi laureado com o Prêmio Nobel. Confira:
Mas fique tranquilo: isso é balela das grandes. Para os médicos que estudam tanto o câncer quanto o pulmão, a alegação não tem pé nem cabeça. Primeiro porque tumores não dependem de baixa oxigenação ou acidez para surgirem. Segundo porque a máscara não provoca nenhum desses efeitos no organismo.
No início do século 20, o cientista alemão Otto Warburg de fato viu que células malignas viviam em ambientes ácidos e com baixo suprimento de oxigênio. Logo, ele teorizou que as duas situações favoreceriam o aparecimento da doença. “Só que, desde então, nosso conhecimento sobre os tumores avançou muito. Hoje sabemos que o mecanismo real da doença não é esse”, explica Isabella Drumond Figueiredo, oncologista da Clínica de Oncologia Médica (Clinonco).
Nos anos 1970, depois da morte de Warburg, ficou claro que o câncer nasce de mutações no DNA das células que levam à sua proliferação desenfreada. “Essas alterações genéticas acontecem por muitos fatores combinados, mas o nível de oxigênio não está entre eles”, completa Isabella.
Para o câncer de pulmão, que é o alvo desse boato, os gatilhos já são bem conhecidos. “As principais causas dessas mutações são a poluição atmosférica, o tabagismo e a inalação de material particulado oriundo da queima de matéria orgânica, como lixo ou queimadas”, explica José Tadeu Colares Monteiro, pneumologista coordenador da Comissão Científica de Infecções Respiratórias da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia – SBPT. A herança genética também é relevante.
A acidificação e a hipóxia de algumas regiões do tumor são consequências da doença, e não sua causa. Ou seja, mesmo se houvesse uma falta de oxigenação decorrente da máscara, ela não deflagraria câncer. Só que essa notícia falsa não para por aí.
Máscaras não causam asfixia ou falta de oxigenação no sangue
A hipóxia é o nome técnico para uma queda preocupante do oxigênio em circulação. É provocada por quadros de insuficiência respiratória, afogamentos, inalação de fumaça ou doenças cardiovasculares e pulmonares crônicas.
Para que uma máscara provocasse algo do tipo, seria preciso usar um acessório hermeticamente fechado, de um material que impedisse de fato a passagem de ar, o que não é o caso do tecido.
“Os gases que participam do processo respiratório são muito menores do que as partículas de fluidos que carregam os vírus”, comenta Colares. Ou seja, boa parte dos agentes infecciosos é barrada, porém o oxigênio atravessa tranquilamente o espaço entre as fibras do tecido da máscara.
Colares destaca dois conceitos diferentes: ventilação e respiração. “A ventilação, que é a entrada e saída de ar, realmente é impactada com a máscara, mas isso não afeta a respiração, que são as trocas gasosas que ocorrem a nível celular”, diferencia.
Para afetar esse sistema, seria preciso um bloqueio exacerbado e prolongado, que interrompesse de verdade a entrada de oxigênio nos pulmões. Mesmo a máscara N95, a mais ligada ao bloqueio ventilatório, não é capaz disso. “Não há registro de danos causados por ela”, complementa.
A seguir, separamos mais duas notícias falsas sobre o uso de máscaras.
Fake news 1: máscaras aumentam a concentração de gás carbônico (CO2) no sangue
O racional por trás dessa história furada é semelhante ao descrito acima. Com a circulação de ar prejudicada, o indivíduo acabaria inalando de volta o gás carbônico que expirou.
Mas as máscaras permitem a saída do CO2, porque não atrapalham a troca de gases. No geral, apenas doenças pulmonares graves, como enfisema pulmonar e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), podem levar à hipercapnia, nome dado a um acúmulo crítico da substância.
“Como o pulmão da pessoa não funciona direito, há uma retenção do CO2 que de fato leva a uma toxicidade. Mas isso ocorre em estágios avançados dessas doenças”, destaca Colares.
Como explicamos nesta matéria, até existe um estudo mostrando pequenos aumentos nos níveis de CO2 no sangue depois de horas usando produtos profissionais. Mas essa elevação não atinge, nem de perto, níveis preocupantes. A própria pesquisa prova que não há repercussões negativas para a saúde em utilizar esses equipamentos. Ah, e vale dizer que a história de que ácido é igual a doença e alcalino equivale a saúde também já foi desmentida.
Fake news 2: máscaras de pano elevam o risco de contrair a Covid-19
Seus propagadores dizem que é melhor não colocar nada no rosto, porque vírus e bactérias ficam grudados na máscara ou presos entre a boca e o pano. Assim, cresceria a probabilidade de acabarmos aspirando algum deles.
“Mas uma vez que fica retido na máscara, o vírus dificilmente volta ao ar”, explica o engenheiro biomédico Vitor Mori, pós-doutorando em medicina e membro do Observatório Covid-19 BR. Isso porque ele não viaja sozinho, mas sim encapsulado em gotículas que, ao entrarem em contato com o tecido, ressecam rapidamente.
“O principal perigo é respirar o mesmo ar que outra pessoa”, destaca Mori. O pneumologista Colares concorda, e complementa que a máscara não é uma bala de prata. Ela integra uma lista de táticas de proteção, lideradas pelo distanciamento físico.
O importante é vestir a máscara direito e evitar colocar as mãos nela durante o uso.
Máscaras são desconfortáveis
Isso não dá pra negar. A sensação de dificuldade para respirar ou se comunicar e até episódios de tontura já foram relatados em estudos com o uso prolongado das máscaras. Talvez, aliás, seja esse desconforto que motive tantos ataques a uma medida simples e eficaz de prevenção.
“Pessoas com rinite ou outras doenças respiratórias, por exemplo, podem se incomodar muito com a máscara. Elas precisam ser bem orientadas e escolher os acessórios que se encaixam melhor ao seu rosto”, destaca Colares.
Ninguém quer ficar o dia todo com um pedaço de pano tampando a boca e o nariz. Mas quanto mais gente aderir a essa medida (e às outras de prevenção ao coronavírus), mais cedo nós passaremos por essa fase crítica da pandemia.