Para falar sobre impacto, temos antes que falar sobre o desafio do acesso – e como romper os obstáculos que ainda separam milhões de brasileiros do direito “universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação [da saúde]“.
Não há melhores aliados para entender o cenário do que histórias reais e dados numéricos. Recentemente, um integrante da nossa equipe esteve em uma cidade com cerca de 1,7 mil habitantes no interior do Tocantins com a missão de lançar um projeto da SAS.
Para além da epopeia da viagem, com cinco paradas em aeroportos nas cinco regiões do país e mais 6 horas de estrada, entre asfalto e terra, a visita trouxe um importante aprendizado: aquelas pessoas (e milhões de outras) estão literalmente distantes de seu direito de acesso à saúde.
Existe um fenômeno que parece estar consolidado no Brasil, a “ambulancioterapia”. Consiste em colocar pacientes na estrada em busca de atendimento especializado e procedimentos simples, algo que não encontram onde moram, ou de médicos especialistas que inexistem num raio de centenas de quilômetros.
A visita a São Félix do Tocantins mostrou isso: no trajeto de retorno, entre a pequena cidade e a capital do estado, Palmas, nove pessoas dentro de um carro – só o motorista e o nosso coordenador viajavam por motivos alheios a cuidar da saúde.
Os outros iam todos buscar soluções que, na cidade deles, não existem.
Há números que ajudam a explicar o tamanho da lacuna. O Brasil tem um dos maiores e mais completos sistemas de saúde do mundo. O SUS é reconhecido e copiado em diversos países porque funciona. Somos grandes admiradores do nosso sistema – e sabemos onde estão suas falhas.
Desde a década de 1980, quando ele foi criado, a taxa de médicos na população do Brasil vem crescendo de forma significativa: em 1980, era de menos de 1 médico por mil habitantes.
No ano 2000, era 1,2 médico por mil; em 2010, 1,62; e, na última contagem, deste ano, 2,65. Nos últimos 20 anos, o número absoluto de médicos mais do que dobrou.
Médicos na população brasileira | ||||
População* |
Médicos** |
Médicos/ 1k habitantes |
Habitantes/ médico |
|
1980 |
122,3 milhões |
113,5 mil |
0,93 |
1.078,58 |
1990 |
150,7 milhões |
135,6 mil |
0,90 |
1.111,36 |
2000 |
175,9 milhões |
210,4 mil |
1,20 |
836,05 |
2010 |
196,4 milhões |
317,7 mil |
1,62 |
618,18 |
2023 |
203,1 milhões |
564,4 mil |
2,65 |
359,79 |
Outro fato animador vem da comparação com outras nações. O Brasil já tem uma taxa de médicos por habitantes compatível à dos EUA (2,6), Canadá (2,7), Japão (2,5) e Chile (2,2), por exemplo.
Até 2028, a previsão é que ultrapasse 3,63 médicos por mil habitantes, uma densidade que nos colocará no patamar médio dos países com os melhores índices de desenvolvimento.
Com mais de 546 mil médicos, de acordo com a última edição da Demografia Médica Brasileira (DMB), estudo realizado periodicamente desde 2011 pela Associação Médica Brasileira (AMB) em parceria com a Faculdade de Medicina da USP, o país tem profissionais suficientes para suprir as demandas de toda a população.
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No entanto, a distribuição irregular entre e dentro das regiões brasileiras agrava as desigualdades no acesso à saúde.
A mesma DMB mostra as disparidades entre tamanhos de cidade e quantidade de médicos.
Municípios com até 50 mil habitantes, que são 88% das cidades brasileiras, concentram apenas 8% do total de médicos. Em outras palavras: 92% dos médicos estão em apenas 12% das nossas cidades.
Esse dado acende um sinal de alerta em nós. Defendemos que é preciso promover soluções de distribuição da saúde de forma a fazer frente ao enorme desafio de seu acesso universal e igualitário.
Nós sabemos que o desafio é complexo e multifatorial. Mas acreditamos que pensar em soluções que promovam a melhor distribuição da saúde é um bom ponto de partida. Como fazer isso?
Spoiler: este será o assunto das nossas próximas colunas.