Bebês reborn: entre a brincadeira e o delírio
O espanto geral e a recorrente comoção jocosa com o tema chamam a atenção do nosso colunista

Não consigo falar sobre tudo, mas recebo todo tipo de pergunta. Um dia desses, em uma live, fui interpelado por um questionamento acerca dos bebês reborn e me senti incapaz de apresentar qualquer reflexão que pudesse acrescentar algo de útil ao debate.
Não tenho experiência clínica com pessoas relacionadas ao assunto, e confesso que ainda não encontrei nada que pudesse ler sobre a clínica com esse público. Mas o espanto geral e a recorrente comoção jocosa com o tema chamam minha atenção. Primeiro porque, como dizia Freud, o humor é uma saída muito inteligente que serve a algumas situações sociais tensas ou angustiantes.
Se não tenho experiência de escuta para dizer algo sobre quem possui um bebê reborn, tenho para falar do espanto social com o tema.
De alguma forma, o tema pegou. Constrangimento? Preocupação? Incômodo? Imagine que situação a nossa se a humanidade encontrasse outra civilização extraplanetária neste momento do debate público.
Como explicaríamos que após milhares de anos de evolução cultural, filosófica, moral, científica nós tenhamos produzido, neste ápice de civilização, o bebê reborn?
“Qual foi a última conquista da humanidade?” Eles perguntariam. E nós, orgulhosos, responderíamos: “o bebê reborn!?” Acho que não!
A princípio, são apenas pessoas brincando de boneca. Winnicott foi um dos psicanalistas que melhor nos lembrou que brincar é coisa séria. Através da brincadeira exploramos o mundo, damos sentido à realidade e preenchemos de significado as nossas relações.
A brincadeira permite a expressão segura de nossos impulsos amorosos e agressivos mais inconscientes, garantindo um campo lúdico onde esses impulsos podem ganhar continência e oportunidade de ressignificação. A brincadeira nos ajuda a crescer, a nos desenvolvermos e a elaborarmos nossos traumas.
Mas quando acreditamos que as fantasias que revestem a brincadeira são a realidade corremos o risco de nos colocarmos sob o domínio do delírio.
Os projetos de lei que começam a pipocar também são manifestações coletivas sobre o tema. A multa prevista para quem furar fila utilizando uma dessas bonecas equivale a um esforço da coletividade em reestabelecer a interdição simbólica do corte que marca os limites entre delírio e fantasia.
Na esteira deste movimento de combate ao delírio, a página do instagram do Tribunal Superior do Trabalho trouxe uma postagem lembrando que bebês reborn não garantem direitos comuns a quem tem filhos de verdade, como licença-maternidade, licença-paternidade, estabilidade no emprego, intervalos para amamentação ou salário maternidade.
Quando jovem tive a oportunidade de estagiar em uma instituição que reunia muitas pessoas em sofrimentos psíquicos. Algumas dessas pessoas, quando precisavam de uma internação, podiam passar meses conosco.
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Durante este tempo, nos aproximávamos muito algumas delas. Lembro-me de dona Maria (nome fictício), que em momentos de crise ficava muito apegada a uma boneca velha que tratava como o seu “bebê”. Ali, naquele contexto, ninguém ousava dizer que aquela boneca não era um bebê.
Os significantes que esta nova linha de bonecas carrega não favorecem o contato com a realidade. Não é um bebê e não pode ser reborn – palavra inglesa que significa “renascido” – posto que é um objeto inanimado.
Mas é um significante que carrega a marca da imortalidade e fala daquele que renasceu ou ressucitou: reborn. O perigo é que se torne, portanto, o filho sagrado para o seu portador, ainda que objeto natimorto e fetichizado.
Nem todo mundo que possui um bebê reborn precisa ser mandado para tratamento psíquico, como dizem por aí. Brincar é legal e faz bem.
O problema parece ser como a coletividade vai acolher a necessidade de quem quer brincar de boneca e o que vai fazer com aqueles que acham que todo mundo precisa participar do seu delírio próprio. Destes, os piores são os que brincam de arminha.