A guerra e a paz nos estados de saúde dos negros brasileiros
Colunista e convidado, que é médico de família, refletem sobre a arte de reparar os danos da segregação racial no acesso à saúde
Nos primeiros dias de 2024, deparei com o descanso e a paz, e, ao longo do Janeiro Branco, refleti bastante sobre os cuidados com a saúde mental, até chegar aos dias vibrantes e alegres do Carnaval. Essa alternância de sentimentos me fez recordar de quatro obras e movimentos artísticos que evocam paradoxos da sociedade brasileira.
O primeiro deles é representado pelo lendário quadro de Candido Portinari exposto na sede das Nações Unidas em Nova York desde 1957. Intitulado Guerra e Paz (1952-56), ele voltou ao Brasil 54 anos depois para ser restaurado e ficou exposto nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo. Na ocasião, os visitantes eram surpreendidos também por um belo texto de Fernando Brant interpretado por Milton Nascimento:
“A guerra são os quatro cavalos regendo a sinfonia de dores, são os braços erguidos em prece pedindo o final dos horrores… A paz é um coro de meninos, é a voz eterna da infância, as mulheres dançando na roça…”
Imediatamente fui arremessada para os estados de guerra e paz que acontecem dentro de nós, nos estreitos territórios geográficos que dividem as periferias dos bairros nobres das capitais brasileiras e dos territórios internacionais, onde frequentemente ouvimos notícias de conflitos armados. Estados de guerra.
O segundo movimento trata das manifestações populares e de resistência que se espalham pelo Brasil afora, como os bois de janeiro, os reisados e as congadas, cuja produção de fé, cultura e arte nos remetem à renovação, aos votos de felicitações, harmonia, proteção e paz para os ciclos que abrem e fecham pela Vida. Estados de paz.
O terceiro movimento trata da arte audiovisual, especificamente do filme Bicho de Sete Cabeças, dirigido por Laís Bodanzky. Numa cena, diante de uma entrega de uma toca, os personagens interpretados por Rodrigo Santoro e Lineu Dias refletem:
“É pra agasalhar aqui [referindo-se à cabeça]. É preciso fingir. Quem é que não finge neste mundo, quem? É preciso dizer que está bem disposto, é preciso dizer que não está com fome, é preciso dizer que não está com dor de dente, é preciso dizer que não está com medo. Se não, não dá! Nenhum médico jamais me disse que a fome e a pobreza podem levar ao distúrbio mental. Mas quem não come, fica nervoso. Quem não come e não vê seus parentes sem comer também pode chegar à loucura. Um desgosto pode levar à loucura, uma morte na família, um abandono do grande amor… A gente até precisa fingir que é louco sendo louco, fingir que é poeta sendo poeta”…
Estados de miséria psíquica.
O quarto movimento ou estado que trago é o da arte na ciência, configurada nos métodos científicos e produções acadêmicas. Assim sendo, convidei o médico Laio Victor Tavares Cardoso para compor este texto ao meu lado. Laio é negro, goiano, neto de quilombola kalunga, mestre em epidemiologia e médico do programa Consultório na Rua, do SUS, que atende a população em situação de rua da cidade do Rio de Janeiro.
Em seu mestrado pela Fiocruz, ele abordou o tema das desigualdades raciais em saúde no trabalho intitulado “Mortalidade por condições sensíveis à Atenção Primária em Saúde: uma análise espaço-temporal do padrões de mortalidade do município do Rio de Janeiro segundo indicadores sociorraciais entre os anos de 2014 e 2021″. A escrita acadêmica inspirou a medicina e a pesquisa a irem de encontro a diversos dos seus que seguem sem acesso adequado à saúde.
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Consciência negra
Vivemos hoje tempos de celebração da consciência negra. Celebramos os passos que nos trouxeram à sobrevivência enquanto a maioria populacional no Brasil, apesar dos quase quatro séculos de escravidão. E, assim, celebramos também os passos que ainda daremos, ancorados num passado de luta e memória ancestral.
No campo da saúde, muitas das práticas e tecnologias empregadas hoje se construíram às custas do estudo de corpos negros, que, vivos ou mortos, alimentam grande parte dos bancos de dados que impulsionam a pesquisa em saúde. Apesar disso, esses corpos se mantêm adoecidos e ocupando o topo dos rankings de mortalidade, recebendo pouco ou nada dessas inovações técnicas e científicas.
Enquanto o acesso à saúde e a equidade continuam sendo os principais desafios para o fortalecimento do SUS, a racialização das políticas públicas de saúde que buscam a consolidação desses eixos segue sendo indispensável, porém negligenciada.
Para isso, é necessário adaptar a oferta de serviços e técnicas de cuidado, de forma justa, às necessidades de cada indivíduo e de cada grupo populacional. A distribuição equânime de serviços de saúde consiste em alocar mais unidades e profissionais de saúde em locais onde a carga de adoecimento de uma população é maior.
Um estudo publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva por pesquisadores das Universidades Federais de Santa Catarina e do Rio de Janeiro com dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE) demonstrou que, ao passo que as pessoas negras (pretas e pardas) estavam mais cobertas por serviços de Estratégia de Saúde da Família em relação a pessoas brancas, elas apresentavam maior dificuldade de acesso a consultas médicas.
É fundamental pensar como o racismo também estrutura o funcionamento dos serviços de modo a perpetuar a exclusão e negar desde as medidas de prevenção e promoção de saúde, como acesso a orientações nutricionais, vacinas e exames preventivos, às medidas de socorro emergencial, quando as doenças já se encontram avançadas.
Além disso, é importante levar em consideração a dinâmica de segregação racial que muitas vezes se observa nos grandes centros, com pessoas negras residindo majoritariamente em áreas pouco planejadas, com altas taxas de criminalidade, pobreza e falta de acesso a saneamento básico e transporte. Isso faz com que a cidade se organize a partir da diferença, potencializando as desigualdades e mantendo os privilégios das elites.
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A (des)igualdade geográfica, social e racial
Não raramente, observamos como os principais centros hospitalares de alta complexidade se localizam nas áreas mais nobres da cidade e como persiste a dificuldade para contratar médicos a fim de atuar em regiões periféricas.
Algumas vezes, quando novos esforços de promoção de saúde chegam às comunidades marginalizadas, há pouco diálogo e um grande esforço em tornar compulsória a adesão às medidas sanitárias. Essas políticas parecem se motivar mais em proteger a elite para a qual essas comunidades trabalham de doenças contagiosas do que em garantir bem-estar e autonomia em saúde.
Em paralelo, é de se esperar nesse contexto que políticas de segurança pública que beneficiem um bairro nobre da cidade, quase que obrigatoriamente, resultem na aplicação da força estatal em uma comunidade empobrecida vizinha. Assim, jovens negros são criminalizados por supostamente representarem risco aos seus vizinhos ricos.
Dados do Departamento Penitenciário Nacional, facilmente acessíveis na plataforma HUB da Igualdade Racial, inaugurada em 2023 pelo Ministério da Igualdade Racial, evidenciam que, no primeiro semestre de 2022, cerca de 70% da população carcerária brasileira era preta ou parda, ante uma minoria de 30% de pessoas brancas.
Este efeito predatório dos territórios elitizados pode ser observado também na saúde, conforme descrito na pesquisa de mestrado de Laio. Os dados apontam que, quanto mais elitizado o bairro, mais segregada a população negra que vive nele se encontra. Exemplo: apesar do alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Botafogo, no Rio de Janeiro, negros apresentam taxas de mortalidade cerca de 50% maiores no bairro carioca.
A população de Botafogo é majoritariamente composta de pessoas brancas, segundo o IBGE, de faixas de renda média a alta. Neste espaço, porém, também se localiza a favela Santa Marta, com cerca de 4 mil habitantes, a maioria negros.
A mesma tendência se reproduz em praticamente todos os bairros da Zona Sul carioca, que apresentam verdadeiros abismos separando as taxas de mortalidade entre brancos e negros, muitas vezes por doenças como diarreia e tuberculose. As taxas entre pretos e pardos chegam a ser 100% maiores em regiões como a Lagoa, bairro do Rio com um dos mais caros metros quadrados do país.
A pesquisa traz a hipótese de que, onde os serviços são escassos, acaba havendo uma maior competição por acesso, a partir da qual negros frequentemente ficam no prejuízo.
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Racismo na assistência
Do mesmo modo, quando há um gargalo estreito separando pacientes e médicos, o racismo acaba sendo o principal mediador de exclusão e acesso. A profissão médica ainda se mantém embranquecida, mesmo após 11 anos da Lei de Cotas, implementada em 2012.
O Conselho Federal de Medicina aponta que, em 2019, quase 70% dos egressos de escolas médicas do Brasil eram autodeclarados brancos. Tal discrepância se torna ainda mais interessante quando notamos que a maioria das aulas práticas dos cursos de medicina ocorre em serviços do SUS, do qual 67% da população negra brasileira é exclusivamente dependente, segundo dados do IPEA.
É possível pensar na disseminação de uma prática clínica que, de dentro do consultório, considere a equidade como principal instância de mediação entre o sofrimento de um paciente e o cuidado de que ele necessita? Quantos profissionais de saúde levam em consideração a fome, a ausência de água em casa ou até mesmo a falta de relógio ou calendário (quadro comum quando se trata da população em situação de rua), na hora de solicitar um exame que necessita de 8 horas de jejum ou que a consulta de retorno estará agendada para o dia 5 de março do ano que vem?
Os gigantescos abismos sociais que separam a população brasileira são escancarados quando consideramos que o racismo e as políticas de saúde precisam estar preparadas para encará-los. A equidade racial consiste em compreender que o racismo é também um importante vetor de adoecimento e a partir daí planejar práticas e políticas que garantam às pessoas negras o que historicamente lhes vem sendo negado: acesso à saúde.
* Laio é médico de família e mestre em epidemiologia pela Fiocruz. Atua no projeto Consultório na Rua na cidade do Rio de Janeiro