Norovírus: feliz vírus velho
Agente causador do surto de diarreia no Guarujá é velho conhecido da ciência. Confira detalhes de sua biografia

Entre dezembro e janeiro, no município do Guarujá, a “Pérola do Atlântico”, no litoral paulista, ocorreu um surto de diarreia que acometeu mais de 6 mil pessoas.
Estudos epidemiológicos sugeriram que ligações clandestinas de água e esgoto podem ter favorecido a transmissão do agente causal, o norovírus. O ano? Entre 2009 e 2010. Não, não me estou confundindo: é exatamente a mesma coisa que está ocorrendo agora no Guarujá, onde milhares de pessoas adoeceram pelo mesmo vírus durante as festas de fim de ano.
Quem é o norovírus?
O nome original do norovírus era Norwalk virus, porque foi achado pela primeira vez na cidade de Norwalk, em Ohio, nos EUA em 1968 em crianças com diarreia. Ele é do grupo dos calicivírus, que tem este nome porque algum virologista com dom artístico (isso é mais comum do que se imagina) viu marquinhas em forma de cálice na superfície desses patógenos.
Por não ter aquele envelope de gordura como envoltório externo que achamos nos coronavírus, o norovírus é muito resistente no ambiente a desinfectantes, calor e luz.
E o genoma, feito de RNA, ansioso por mutações, permite que várias cepas diferentes existam.
O norovírus está implicado em 20% dos casos de gastroenterites em pessoas, aquelas infecções que causam diarréia e vômitos. Os rotavírus ajudam em grande parte dos demais casos, juntos com bactérias e protozoários.
Quando infecta as células de nosso intestino, o norovírus arrasa com o tapete que recobre este órgão e aí não podemos mais absorver água, que é mandada para fora na forma de diarreia. Mas este vírus também infecta células do nosso sistema imune e isso pode ajudar na sua capacidade de invadir o intestino.
Só de olhar a pessoa, não dá para saber o que está causando a gastroenterite, pois os sintomas são parecidos para suas várias causas: diarreia, vômito, febre e, preocupante, a desidratação que, dependendo da causa, pode levar a pessoa a morte em horas caso ela não receba soro pela veia.
Só dá para saber mesmo com um teste como o PCR, que tanto fizemos durante a fase mais aguda da epidemia de covid-19 (que, a propósito, ainda está em andamento). Para “ajudar”, uma pessoa infectada pode excretar o norovírus pelas fezes por dois meses!
Como lidar com ele
Há vacinas experimentais contra o norovírus, mas nenhuma em uso ainda. Não temos também um antiviral específico e todo tratamento é sintomático, sobretudo baseado em reidratação. Usar água tratada e ter sistema de esgotos como manda a boa engenharia é indispensável.
Lavar as mãos e depois usar antisséptico (os mesmos que usamos contra o coronavírus) também ajuda e não é difícil de fazer.
Não é necessário ser muito expert para saber o que aconteceu no Guarujá: ligações clandestinas de água e esgoto entraram em contato com a rede de abastecimento de água, ajudadas pelas águas de chuva, o que levou a contaminação das águas para beber e alimentos, ao que se somou um aumento populacional fora da capacidade da cidade.
Aí, um vírus super-resistente ao ambiente, o norovírus, contra o qual não há vacina, rapidamente se disseminou, do mesmo modo que já havia ocorrido entre 2009-2010.
Ou, para simplificar, pura negligência. Negligência política, pois canos de esgoto ficam enterrados e não dão boa propaganda política. Negligência também da indústria turística, que se entorpecem pelo dinheiro que os turistas trazem e se esquecem da sua responsabilidade.
Isso vai se repetir se o nosso sistema de saneamento (que não existe para um quarto dos brasileiros) não for tirado do século 19 e trazido para o século 21. O norovírus e seus colegas da Virosfera estão contando com isso.