“Tive pensando em me mudar, sem te deixar pra trás, yeah!” Durante anos, a canção imortalizada na voz de Chorão, da banda Charlie Brown Jr., foi tema de uma série de TV voltada a desbravar os caminhos, as alegrias e os perrengues da adolescência.
Por mais de duas décadas, Malhação, da TV Globo, fez parte dos fins de tarde e do imaginário do brasileiro, o que só enfatiza quanta história para contar essa efervescente etapa da vida tem…
Ela chega sem nenhuma cerimônia, não pede licença e traz, como diz a música, uma série de transformações. No corpo, uma explosão de hormônios. Na mente, novas emoções, descobertas, dilemas e atos de rebeldia — a ponto de os adultos a chamarem, jocosamente, de aborrescência.
Convém, no entanto, deixar os clichês de lado e mergulhar com profundidade nesse período pelo qual todos nós passamos ou vamos passar — um convite que se estende a toda a família. Há bons motivos: nunca pais e filhos mais jovens se envolveram em tantos conflitos e dramas psicossociais. Sim, a realidade anda superando a ficção.
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Na puberdade, as mudanças parecem acontecer todas ao mesmo tempo, mas a natureza, sábia como é, orquestra um encadeamento de eventos. Os primeiros sinais de despedida da infância são claros.
As meninas começam a desenvolver as mamas e despontam em estatura. A seguir, surgem pelos em lugares novos, o corpo passa a adquirir curvas e a produzir mais suor e oleosidade na pele. O ciclo se fecha com o amadurecimento dos órgãos genitais e a chegada da primeira menstruação, a menarca.
Já os meninos apresentam um desabrochar mais discreto. Curiosamente, o primeiro indício é o crescimento dos testículos. É preciso pontuar que isso preocupa muita gente, pois o pênis, em si, só termina de se formar mais pra frente (alguns acham até que ele encolheu!).
Para os rapazes, a aceleração do crescimento, o estirão, acontece um pouco mais tarde. Por isso, é comum encontrar salas de aula com garotas mais altas e alunos mais baixos. Contudo, entre a partida e a linha de chegada, o processo de crescimento é mais intenso para eles, que ainda experimentam os percalços da sudorese, a mudança de voz, a primeira ejaculação e o aumento dos pelos.
O médico Benito Lourenço, chefe do Instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas de São Paulo, detalha que a puberdade feminina costuma ter início entre os 9 e os 10 anos, enquanto a masculina dá as caras em torno dos 10 aos 11.
“É um fenômeno rápido, que dura de três a quatro anos, e pode causar certa angústia, porque é comum um descompasso entre corpo e mente”, afirma o hebiatra, um dos poucos médicos especialistas em adolescência no país. As dúvidas também se multiplicam. “Elas vão da irregularidade do ciclo menstrual aos episódios de ejaculação durante o sono”, exemplifica Lourenço.
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Não é moleza, mas pode complicar. Paula de Almeida Galvani, de 16 anos, de Guarulhos (SP), vivenciou o início dessas transformações em um dos momentos mais complexos da história: a pandemia de covid-19. Entre 2020 e 2021, a doença nova e desafiadora fechou escolas, restringiu a circulação de pessoas e despertou um monte de sentimentos cujos impactos ainda são elucidados pela ciência.
Diante de um mundo recluso, contar com uma irmã 11 anos mais velha foi essencial para a estudante. “Por ela ter tido essa experiência antes, sempre contei com um apoio para saber o que fazer ou não”, relata Paula. “Questões que eu não sabia como tocar com a minha mãe eu levava para minha irmã.”
Para a jovem, ter um espaço aberto ao diálogo em casa fez a diferença. Por mais que fosse normal hesitar sobre o que e quanto se abrir. “Como era tudo novo para mim, eu me perguntava se iriam entender ou não o que estava passando e que tipo de solução poderiam dar”, conta. Mas os filhos crescem e aprendem. Os pais também.
A definição da adolescência como a conhecemos é relativamente recente. A ideia de um período específico da vida, entre a infância e a fase adulta, começa a ser construída no final do século 19. No livro Adolescência e Errância (Nau Editora – Clique para comprar*), a psicanalista Luciana Gageiro detalha como a ética romântica e as transformações socioeconômicas contribuíram para a consolidação do conceito.
E, no século 20, chamam a atenção fenômenos como a segmentação do ensino e o aumento do tempo de dependência dos pais. A adolescência se descola da infância e mantém distância da vida adulta.
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No singular e no plural
Diante das mais diversas dúvidas que aparecem nesse período de amadurecimento, o acompanhamento médico ganha importância. O Brasil conta com pouco mais de 300 hebiatras, mas isso não deve ser um motivo de alarme.
O pediatra tem plena capacidade para dar continuidade aos cuidados mesmo após a saída da infância. Além disso, novos personagens podem entrar para o elenco nessa temporada, como ginecologistas, urologistas, endocrinologistas e psicólogos.
Aos pais e cuidadores, cabe um exercício: estimular a autonomia no cuidado com a saúde, o que significa observar, ouvir mais e apoiar no que for preciso. Aos poucos, o adolescente deve assumir o lugar de protagonista nas consultas. Isso inclui lidar com documentações, relatar as próprias queixas ou sintomas, além de trazer questionamentos pertinentes.
“Adolescentes compõem um grupo heterogêneo, e é necessário ter um olhar atento às diferenças individuais”, afirma Alda Elizabeth Iglesias, presidente do Departamento Científico de Medicina do Adolescente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
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A adolescência é uma etapa universal, vivenciada por qualquer ser humano, ainda que seu significado tenha sofrido alterações ao longo dos séculos e das culturas.
Questões de desenvolvimento corporal e psíquico, contudo, são fatores que pouco mudam de geração em geração, como avalia a médica da SBP: “Todos os jovens precisam de cuidados básicos no que diz respeito a sobrevivência, companheirismo, redes familiares e sociais, educação pedagógica etc.”
O que muda é o jeito de lidar com um mundo em constante transformação, um processo acelerado pelos avanços da tecnologia que repercute em diversas esferas da vida. Na era digital, as informações circulam em alta velocidade, de maneira superficial e com um volume cada vez maior de conteúdos.
Esse bombardeio, despejado pelo celular ou computador, já se faz sentir: pesquisas sugerem uma diminuição expressiva na capacidade de se concentrar, focar e memorizar. “Observamos uma redução na habilidade de ler com criticidade e aprender de forma profunda. Há mais desatenção, menos profundidade e toda uma sobrecarga mental”, analisa Alda.
A preocupação não se restringe ao consultório médico. Pais, professores e psicólogos comungam dela. Tanto é que a proibição dos celulares nas escolas está no centro das discussões no país. Enquanto o Ministério da Educação articula um projeto voltado ao tema, a Câmara dos Deputados avalia mudanças na legislação a fim de podar o uso desenfreado da tecnologia. Só que os desafios também moram dentro de casa.
Na década de 2000, eram comuns orientações do tipo: “Deixe o computador em local que permita a observação do que seu filho acessa”. Agora, com o universo da internet na palma da mão, o jogo ganha novas peças e dificuldades.
A começar pela dependência das telas que beira o vício. Crianças e adolescentes passam horas e horas imersos nos dispositivos. Depois o perigo ronda os conteúdos e as interações em si.
“Os riscos são vários: desde acesso a material impróprio e fóruns obscuros a golpes e crimes”, diz o especialista em tecnologia e gestão Arthur Igreja, pesquisador da FGV. Assegurar uma navegação mais segura passa pela redução do tempo de tela, pela construção de uma relação de confiança, além de recursos que filtram o conteúdo que pode ser acessado.
Não é censura. É uma questão de saúde e segurança.
Aflorar de novas emoções
Conversa e orientação são mais do que bem-vindas nessa fase porque o cérebro adolescente passa por grandes modificações. Algumas conexões neurais são formadas, outras perdidas, algumas canalizadas para certos departamentos. Tudo isso pode até lembrar o roteiro da animação Divertida Mente, da Pixar, mas é pura ciência.
Para o estudante Miguel Passos Miranda, de 16 anos, lidar com novas emoções e sentimentos foi um dos principais desafios na transição da infância para a adolescência.
“Quando eu era mais novo, não tinha tanto com o que me importar, basicamente eu só existia como qualquer criança, que brinca, se diverte e é feliz. Fui crescendo e tive que aprender a conviver com o que estava passando dentro de mim”, conta o garoto do Rio de Janeiro.
Felizmente, o conhecimento e a atenção dedicada à saúde mental nunca estiveram tão em alta — inclusive nos quatro cantos da internet. Ainda assim, persistem diversas lacunas no acolhimento aos mais jovens.
As queixas incluem a indisponibilidade dos pais, a dificuldade de introduzir um assunto mais espinhoso e o fato de ter suas questões minimizadas pelos adultos. Do outro lado, existem dúvidas sobre como acessar os filhos sem resvalar na chatice, o receio de entrar em tópicos sensíveis e o hábito de manter as portas fechadas, literal e figurativamente.
Parece algo incontornável? A psicóloga Karen Scavacini, do Instituto Vita Alere, em São Paulo, aponta que a estratégia para desconstruir essas barreiras é o diálogo aberto e responsável.
“O primeiro passo para pais e cuidadores é o reconhecimento de que há um sofrimento real atingindo o adolescente e que saúde mental não é mimimi. Trata-se de respeitar o tempo e as angústias do adolescente, sem banalizá-las”, enfatiza. Outra recomendação é buscar fazer uma leitura do ambiente e aproveitar para tocar no assunto naqueles dias em que há uma maior disponibilidade de troca.
Nesse contexto, dá até para abrir mão da formalidade que envolve o ato de sentar e conversar. Uma maneira de tornar esse momento menos constrangedor, por assim dizer, é introduzir a discussão a partir da cena de um filme, de uma notícia envolvendo uma celebridade ou até mesmo de um vídeo do TikTok.
“E vale ter em mente que outras pessoas também podem participar dessa conversa. Às vezes o jovem está mais aberto a falar com outros adultos, como um professor ou um padrinho, e não os pais”, observa a psicóloga. Aliás, é imprescindível — de um lado ou do outro — tocar no tema da saúde mental.
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Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) aponta que 80% dos pais e responsáveis já falaram sobre o assunto em casa e 63% disseram já ter sido abordados pelos filhos para conversar a respeito. Com os resultados em mãos, a instituição acaba de lançar uma cartilha orientando como fazer essa aproximação.
“É um ledo engano pensar que criança e adolescente não têm ansiedade ou depressão, e esse preconceito afasta a busca pelo profissional de saúde”, afirma o psiquiatra Antônio Geraldo da Silva, presidente da ABP. “Precisamos mostrar que adoecer é normal, e tratar também.”
Esse cuidado é crítico inclusive para prevenir situações mais trágicas.
Um levantamento da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) revela que a probabilidade de suicídio entre adolescentes tem crescido de forma mais intensa do que em outras faixas etárias. Entre 2000 e 2022, o ato representou, em média, 4% das mortes entre pessoas de 10 a 29 anos. Ou seja, essa fatia da população — o futuro da nossa sociedade — pode, sim, estar sofrendo.
Questionados sobre a mensagem que gostariam de deixar durante a entrevista com VEJA SAÚDE, tanto Paula quanto Miguel destacaram o poder da escuta atenta, do acolhimento e, principalmente, de deixar o julgamento de lado.
Pode ser trabalhoso e implicar uma ruptura no paradigma da família, mas é o melhor roteiro para desanuviar as tramas da adolescência.
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