Como um lagarto que come 3 vezes por ano ajudou a criar o Ozempic
Réptil nativo da América do Norte guarda em seu veneno o segredo para a formulação de medicações que revolucionaram o tratamento da diabetes e da obesidade

O Ozempic e outros remédios de efeitos semelhantes, como o Wegovy e o Mounjaro, revolucionaram o tratamento da diabetes e da obesidade nos últimos anos. Mas talvez você ainda não conheça um dos responsáveis por essa revolução: o monstro-de-gila.
O pequeno lagarto, habitante do sul dos Estados Unidos e do norte do México, foi a chave para a descoberta de drogas análogas ao hormônio GLP-1, que atua no corpo induzindo a saciedade e a produção de insulina.
Intrigados pelos hábitos do réptil, que consegue sobreviver mesmo fazendo menos de cinco refeições anuais, cientistas descobriram uma molécula específica no veneno do animal.
Essa molécula, a exendina-4, desencadeou a série de avanços científicos que desembocaram nas medicações hoje tão populares.
Monstro-de-gila: do deserto ao sucesso farmacêutico
Da espécie Heloderma suspectum, os monstros-de-gila são animais bastante peculiares. Eles integram o seleto grupo dos lagartos peçonhentos – assim como os dragões-de-komodo – e são adeptos a uma dieta radical.
Os répteis carnívoros fazem um tipo de jejum intermitente extremo: são capazes de consumir todas as calorias que precisam para sobreviver em apenas três ou quatro refeições anuais.
Para fazer valer esse almoço, os bichos conseguem consumir até um terço de seu peso corporal quando se alimentam. Cientistas acreditam que essa habilidade é resultado de uma adaptação evolutiva, acarretada pela baixa disponibilidade de comida.
As taxas metabólicas mais lentas e a capacidade de armazenar gordura garantem que o lagarto não passe fome durante o ano.
Curiosos com esse hábito, cientistas se debruçaram sobre as substâncias presentes no organismo do monstro-de-gila. E descobriram uma molécula especial no veneno dos lagartos, a exentina-4, que fica armazenada na mandíbula inferior dos bichos.
Aliás, não precisa se preocupar: mesmo em um raro encontro com um espécime, a mordida costuma liberar pouco veneno, e não há registro de mortes por conta dele.
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A molécula valiosa
Antes da descoberta da molécula escondida no veneno dos lagartos, pesquisadores já estudavam o GLP-1, hormônio produzido no intestino que, quando liberado, sinaliza ao cérebro que estamos saciados e indica que o pâncreas deve iniciar a produção de insulina assim que a glicose no sangue aumentar.
A solução para a diabetes tipo 2, doença em que o corpo não consegue aproveitar a insulina, e para a obesidade, então, parecia simples. Bastava administrar mais GLP-1 nos pacientes.
O problema é que o hormônio dura poucos minutos na corrente sanguínea e some antes de chegar ao pâncreas.
E aí entra o monstro-de-gila: a exentina-4, presente no veneno do bicho, atua de forma similar ao GLP-1 e dura bem mais tempo no organismo. Em 1996, John Eng, um dos cientistas responsáveis pela descoberta, patenteou a exentina-4 e a vendeu para a companhia Amylin Pharmaceuticals.
Como o Ozempic surgiu?
Em 2002, a farmacêutica Eli Lilly adquiriu a droga da Amylin, que passou a ser comercializada sob o nome Byetta em 2005, quando foi aprovada para tratamento de diabetes pela Food and Drug Administration (FDA), equivalente estadunidense à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Em seis meses, o remédio já era usado off-label para perda de peso, por conta desse efeito de prolongar a sensação de saciedade e retardar a digestão. Em paralelo, a empresa dinamarquesa Novo Nordisk estudava alternativas ao GLP-1.
O primeiro lançamento veio em 2010: a Victoza, injeção de liraglutida, substância semelhante ao hormônio. A Saxenda, droga com dobro da dose da Victoza, foi lançada em 2014 com foco na perda de peso. O problema é que essas medicações precisavam ser aplicadas diariamente para funcionar.
Os estudos avançaram, e a Novo Nordisk lançou ao mercado a semaglutida subcutânea, um análogo de GLP-1 mais eficaz sob o nome Ozempic, aprovado em 2017 pela FDA para a diabetes. Para pacientes que não gostam da ideia de injeções semanais, em 2019 o Rybelsus, uma versão oral da semaglutida, chegou ao mercado.
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Além de atuar contra o diabetes, a semaglutida promove perdas expressivas de peso, reduz o apetite e leva os pacientes a perderem até 15% do peso corporal. Na sequência, surgiu o Wegovy, com uma dosagem maior de semaglutida.
A farmacêutica Eli Lilly depois criou o Mounjaro, nome comercial da tirzepatida, medicação que liga o GLP-1 a outro hormônio do sistema gastrointestinal, com efeito ainda mais significativos na perda de peso, apontam estudos.