Desarme a bomba da pressão alta
Precisamos melhorar (e muito!) a prevenção, o diagnóstico e o tratamento da hipertensão, uma das maiores ameaças cardiovasculares
Desde a Roma antiga, a humanidade sabe da existência de um “pulso” na circulação sanguínea e de sua conexão com a saúde. Mas foi só na segunda metade do século 19 que o conceito de hipertensão primária — aquela que não é provocada por uma doença específica, e sim por um conjunto de fatores — foi cunhado pelo médico britânico Frederick Mohamed.
Mais de 150 anos depois de dar nome aos bois, a ciência já mapeou os estragos que ela faz, entendeu sua ligação com o estilo de vida e criou medicamentos para domá-la.
Silenciosa e por vezes difícil de controlar, a hipertensão é o fator de risco responsável pela maior porcentagem de mortes por problemas cardiovasculares, em especial infartos e acidentes vasculares cerebrais (AVCs).
Quando não são fatais, esses desfechos podem resultar em anos perdidos por incapacidade física. “A pessoa sobrevive a um derrame, mas fica com sequelas que comprometem sua autonomia”, exemplifica a cardiologista Gláucia Maria Moraes Oliveira, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Além do AVC em si, hoje se sabe que a pressão alta aumenta o risco de demências, entre elas o Alzheimer. Fora os danos diretos aos rins e outras panes pelo coração e as artérias do corpo, a doença também está associada a quadros mais graves de infecções, caso da própria Covid-19.
Os estudiosos entendem o porquê de tudo isso e conhecem a fundo o estado dos vasos sanguíneos e dos órgãos de um hipertenso. Só que, mesmo com tanta intimidade, os números são desanimadores. “Estima-se que apenas um terço dos portadores tenha sido diagnosticado e somente um quinto se mantenha dentro das metas de pressão arterial”, conta Gláucia.
Para complicar, o quadro está aparecendo cada vez mais cedo, financiado por má alimentação, sedentarismo e estresse. Em uma pesquisa nacional, conduzida pelo Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ, a prevalência de hipertensão na adolescência chegou a quase 10%. E isso em 2016.
A suspeita é que a pandemia tenha piorado as coisas, dada a bagunça generalizada nos hábitos e o aumento nas mortes por doença cardiovascular.
Desmontar esse cenário é um desafio global, e passa por quebrar a inércia médica no acompanhamento dos pacientes e melhorar a adesão deles ao tratamento, que é para a vida toda e vai muito além do uso de remédios. É urgente entender por que a hipertensão é uma combinação explosiva para o organismo e como podemos desarmar essa bomba.
Afinal, por que tanta gente está com a pressão descontrolada? Primeiro, por se tratar de uma condição até certo ponto esperada à medida que os anos passam.
“Hábitos saudáveis ajudam a prevenir seu aparecimento, mas a hipertensão tem a ver com o envelhecimento dos vasos sanguíneos e com outros fatores que nos acompanham ao longo da vida”, explica Gláucia.
Tanto que, se a prevalência na população adulta em geral está na casa dos 30%, após os 60 anos ela sobe para mais de 50%. O aumento na expectativa de vida, junto à dificuldade de adotar uma rotina equilibrada, ajuda a entender por que tem cada vez mais hipertenso por aí.
Em 1990, eram 650 milhões diagnosticados pelo planeta. Em 2019, 1,28 bilhão, segundo levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Imperial College London publicado no periódico The Lancet. Ou seja, o número quase dobrou.
Apesar de ser conhecida na teoria, na prática a doença é bem sorrateira. “A hipertensão é silenciosa. Só dá sintomas quando já existem complicações nos chamados órgãos-alvo, os mais atingidos por ela”, aponta a cardiologista Fernanda Colombo, presidente do 43º Congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp), que acontecerá em 2023 e colocará o problema como um dos protagonistas da discussão.
Sem queixas, as pessoas deixam de procurar o médico, o que resulta na falta ou no atraso do diagnóstico. E olha que a detecção é simples! Basta a aferição com o esfigmomanômetro (o aparelho de pressão), após cinco minutos em repouso, feita três vezes em sequência no consultório, com intervalo de um minuto entre elas. Até por isso, o certo seria medir de praxe, não esperar os check-ups cardiológicos em si.
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“Todo indivíduo, a partir dos 3 anos de idade, devia ter a pressão aferida em consultas com qualquer especialidade médica, mas isso não é feito de forma suficiente no país”, observa a nefrologista Frida Liane Plavnik, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Hipertensão (SBH). Pois é, faltam informação e engajamento entre os profissionais para incluir a prática na rotina.
A questão é que flagrar o aumento da pressão mais cedo faz diferença no sucesso do tratamento. “Quanto antes a pessoa atingir a meta preconizada, menos complicações de saúde terá”, justifica Frida.
A demora pode dificultar a ação dos remédios e fazer com que seja necessário tomar mais comprimidos por dia para segurar os ponteiros do medidor.
O diagnóstico precoce, ou ainda na fase pré-hipertensiva, combinado a intervenções rápidas no estilo de vida, tem efeito oposto: pode até segurar a necessidade de tomar ou acrescentar mais remédios no cotidiano.
Só vale abrir um parêntese: isso não quer dizer que, caso já faça uso, o paciente pode cortar medicamentos por conta própria quando a pressão estabilizar. É o médico que dá ou não esse aval. As decisões por conta, aliás, são um dos fatores que incendeiam as tristes estatísticas atuais.
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Pólvora não falta
Não dá pra falar de inimigos da pressão sem mencionar o sal e o sódio da alimentação. Apesar das campanhas e da mobilização, o brasileiro ainda consome o dobro do que é indicado por dia — a ingestão média é de 12 gramas de sal, mais de duas colheres de chá, e não deveria passar de 5 gramas.
Você pode até pensar que não coloca tanto do tempero na comida, mas o problema não está só aí. “Os alimentos ultraprocessados têm bastante sódio. Uma porção de macarrão instantâneo já preenche metade da recomendação diária. Além disso, a maior parte dos conservantes usados contém esse ingrediente”, repara a nutricionista Elisa Maia, do Instituto Nacional de Cardiologia, no Rio de Janeiro.
Embora associemos o mineral a produtos salgados, até refrigerantes zero, biscoitos doces e medicamentos podem carregá-lo. Sim, remédios como analgésicos e antiácidos efevescentes podem bagunçar a pressão e elevar o risco cardíaco em hipertensos, segundo estudo com mais de 300 mil ingleses apresentado no último encontro da Sociedade Europeia de Cardiologia.
Além da alimentação, o estilo de vida mais sedentário e circundado de telas colabora com a escalada da pressão, porque favorece o ganho de peso, uma realidade para seis em cada dez brasileiros.
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“Indivíduos com sobrepeso e obesidade podem ter a síndrome metabólica, um conjunto de alterações no organismo que envolve resistência à insulina, inflamação sistêmica e aumento da pressão e dos níveis de colesterol e glicose no sangue”, afirma Marcelo Franken, gerente médico de cardiologia do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Também botam lenha na fogueira dois fenômenos em ascensão, o estresse e a ansiedade. “Eles provocam descargas de adrenalina, substância que faz os vasos se contraírem, e isso mexe diretamente com a pressão e o fluxo sanguíneo”, esclarece o cardiologista César Jardim, do Hospital do Coração (HCor), na capital paulista.
Novas pesquisas ainda acusam outros fatores de patrocinar a hipertensão, caso da poluição ambiental e da má higiene dental — uma análise com dados de mais de 270 mil chineses associou problemas bucais a uma maior propensão ao aperto nas artérias.
Talvez as pessoas prestassem mais atenção na própria pressão se soubessem a quantidade de problemas de saúde que poderiam ser evitados ao mantê-la sob controle.
Um estudo recém-publicado no Journal of the American Heart Association acompanhou 20 milhões de atendimentos por infarto, derrame, arritmia e embolia pulmonar em departamentos de emergência dos Estados Unidos por dois anos.
Resultado: 30% estavam relacionadas à hipertensão. São nada mais nada menos do que 6 milhões de visitas ao pronto-socorro para tratar quadros graves. Para entender por que ela é tão perigosa, vamos esmiuçar sua origem.
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Ninguém dorme saudável e acorda hipertenso. São anos de mudanças, que geralmente envolvem a retenção de líquidos provocada pelo alto consumo de sódio, aumentando o volume de sangue em circulação, e a liberação de substâncias produzidas pelo corpo que constringem veias e artérias. Sob influência da genética, da idade e dos hábitos, os vasos se tornam cronicamente mais tensos.
“Essa situação gera lesões no endotélio, a parede interna dos vasos sanguíneos, que, por sua vez, apresenta uma reação inflamatória”, descreve Franken.
Uma das primeiras (e invisíveis) consequências é a aterosclerose, o processo de formação de placas e trombos capazes de obstruir as artérias. Esse é o processo básico por trás de infartos e AVCs. Se a pessoa também tiver diabetes e colesterol nas alturas, então… Está formado um autêntico campo minado.
Com a confusão armada dentro das artérias, quem paga o preço são os órgãos. O coração é o que mais se ressente: quanto maior a pressão, mais intensamente a bomba precisa trabalhar.
“Em curto prazo, ele se adapta e até aumenta de tamanho. Com o tempo, contudo, essa força de contração diminui”, detalha Franken.
O cardiologista faz uma analogia com um elástico: “Você estica muito e ele volta ainda mais forte, mas, num determinado momento, ele esgarça e perde suas propriedades”.
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É aí que surgem pepinos como a insuficiência cardíaca e as disfunções nas válvulas. Lá nos rins, cujo trabalho interfere diretamente no controle da pressão, a hipertensão pode colocá-los a caminho da falência — é a chamada doença renal crônica.
O cérebro é outro alvo. “Além dos AVCs, lesões vasculares ali decorrentes da pressão alta podem levar à demência, e existem estudos sugerindo uma ligação com o Alzheimer”, alerta Frida. E ainda sobra para os olhos: a agressão por anos e anos aos vasinhos da retina não raro provoca até cegueira.
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O problema do controle da hipertensão não é falta de remédio: são cinco classes de anti-hipertensivos disponíveis, e muitos comprimidos são fornecidos pelo SUS ou pelo programa Farmácia Popular. O que todos os especialistas ouvidos por VEJA SAÚDE sublinham como problemática é a falta de adesão e manutenção do tratamento.
“A maioria dos pacientes começa a tomar os medicamentos quando é diagnosticada. Três meses depois, estima-se que o número caia para 80% e, nove meses depois, para 30%”, calcula Fernanda.
A descontinuidade é fruto tanto da sensação ilusória de segurança, já que não há sintomas evidentes e as complicações surgem no futuro, quanto da dificuldade de se lembrar de tomar as pílulas no dia a dia.
Até por isso, a recomendação é investir, quando possível, em comprimidos que combinam mais de um princípio ativo, a chamada dose fixa, e deixar os remédios para a hora em que eles forem mais convenientes.
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Alguns médicos costumam recomendar o horário da manhã, enquanto pesquisas chegaram a apontar como ideal o período da noite. Contudo, um estudo recém-apresentado, que monitorou mais de 20 mil pacientes no Reino Unido, constatou que o importante mesmo é não deixar de tomar, independentemente da hora. “Precisamos nos adaptar à realidade do paciente”, sintetiza Franken.
Engolir os comprimidos até que é uma tarefa fácil se comparada a outras necessidades e desafios dessa jornada. Uma nova pesquisa, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), aponta que menos de um quinto dos hipertensos recebe o cuidado adequado para a doença — a investigação levou em conta o acompanhamento médico regular com exames e orientações sobre alimentação, peso, exercício, tabagismo e consumo de bebida alcoólica.
Tudo isso é tão crucial quanto os remédios, mas acaba sendo menos abordado no consultório. “O tratamento não farmacológico promove respostas quase imediatas na pressão, só que o médico precisa ser convencido da importância de recomendar uma vida saudável”, afirma Carlos Scherr, diretor-geral do Instituto Nacional de Cardiologia.
Mesmo quando o clínico e o paciente fazem a lição de casa bonitinho, a pressão pode não sossegar — e aí estamos diante da hipertensão resistente. É uma situação que atinge entre 10 e 20% dos portadores, mas que não pode ser confundida com fatores como pular doses do remédio ou não se cuidar direito.
“O comportamento faz tanta diferença que, muitas vezes, internamos um paciente com hipertensão por outro motivo e, no hospital, um ambiente controlado, sua pressão cai demais e é preciso reajustar os remédios”, revela Jardim. Se realmente não for o caso, aí o jeito é ir recombinando e acrescentando medicamentos.
Uma opção, caso nem essa tática funcione, é um procedimento feito em hospital há alguns anos, a denervação renal. Ela busca interferir na atividade dos rins, que secretam substâncias que participam da retenção de líquido e da contração dos vasos: ondas de ultrassom provocam lesões nos nervos renais para silenciar seus estímulos.
A técnica chegou a empolgar os profissionais, porém caiu no ostracismo por um tempo. Mas experimentos como um publicado há pouco no The Lancet tendem a resgatar seu lugar ao sol. O trabalho comparou pacientes submetidos à denervação e outros que fizeram uma simulação dela (uma espécie de placebo).
Depois de 36 meses, a queda de pressão foi significativa e sustentada no grupo do tratamento de verdade. “O método está mais moderno e crescendo em popularidade novamente”, nota o cardiologista Heno Lopes, do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo (InCor/USP).
Para confirmar que se trata de um quadro resistente, também é preciso descartar causas subjacentes ao descontrole. Uma das mais comuns é a apneia do sono, condição caracterizada por ronco e microdespertares imperceptíveis.
Durante a noite, o esperado seria a pressão baixar, junto com a frequência dos batimentos cardíacos. Esse contraponto ao agito diurno regula o sistema cardiovascular. Mas quem tem apneia não descansa — pelo contrário, vê o corpo ser inundado por doses de adrenalina e cortisol por causa das pausas na respiração.
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Assim, o organismo fica sob estresse e a pressão decola com o tempo. “Ao ver um caso de hipertensão resistente, o correto é solicitar uma polissonografia, exame padrão ouro para o diagnóstico da apneia”, diz o pneumologista e médico do sono Rodolfo Bacelar Athayde, do Complexo Hospitalar Clementino Fraga, em João Pessoa. O tratamento tende a resolver a parada.
- Calcula-se que até 20% dos casos de hipertensão sejam resistentes ao tratamento
Embora os remédios em si não tenham mudado tanto, o tratamento farmacológico evoluiu nos últimos anos. Na atual diretriz da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), a recomendação passou a ser começar o plano terapêutico combinando dois princípios ativos quando a hipertensão está em estágio 2 (acima de 160 por 100 e abaixo de 180 por 110 mmHg).
“E o tempo para esperar que eles façam efeito é curto. Hoje orientamos que o médico aguarde dois ou três meses e faça novos ajustes se não obtiver resultados”, conta o cardiologista Jairo Borges, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Melhor do que esperar isso acontecer é evitar que a bomba se arme. Sim, estamos falando de prevenção! E aqui quem manda é o estilo de vida.
“Ao comer, a regra é privilegiar alimentos minimamente processados e evitar ultraprocessados e frituras. Devemos inserir mais frutas, verduras e legumes na dieta e preferir laticínios desnatados”, prescreve Elisa.
Os exercícios também fazem parte da fórmula. “Se você atinge a recomendação de realizar ao menos 150 minutos semanais de atividade física, tem 25% menos chances de se tornar um hipertenso. Se já tem a doença, o risco de ter eventos cardiovasculares no futuro cai 50%”, aponta o educador físico Leandro Campos de Brito, pesquisador da Oregon Health & Science University, nos EUA, e diretor do Departamento de Atividade Física da SBH. Cuidar da mente e do sono é outro conselho incontornável.
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As políticas públicas também precisam melhorar, em especial as de acompanhamento dos pacientes diagnosticados e de aferição da pressão em escala populacional.
“Conforme recomendam as diretrizes, outros profissionais de saúde podem fazer a medição, como fisioterapeutas, dentistas e até professores nas academias de ginástica”, sugere Frida.
“Outra estratégia que já demonstrou eficácia é ir até onde as pessoas estão, no trabalho ou no lazer”, complementa Gláucia.
A especialista cita uma experiência americana de 2018, que colocou barbeiros e farmacêuticos para trabalharem juntos com 319 homens negros hipertensos — pessoas negras correm maior risco de ter a doença. Eles foram divididos em dois grupos: metade ouviu conselhos do barbeiro para procurar um serviço de saúde, metade foi cortar o cabelo e já encontrou ali um farmacêutico para medir a pressão e dar orientações. Um ano depois, só a segunda turma seguia com a pressão controlada.
Eis um exemplo de que medidas simples, baratas e criativas fazem a diferença para desligar essa bomba-relógio e conter a tempo a hipertensão.
Mulheres sob pressão
A hipertensão é perigosa para ambos os sexos, mas a ala feminina encara algumas particularidades. Primeiro, as mulheres estão protegidas pelo hormônio estrogênio até a menopausa. Depois, ficam em risco igual ou até maior que os homens — elas sofrem mais com o AVC, por exemplo.
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E outros fatores pesam para elas, caso da pressão alta na gravidez, da maior incidência de doenças autoimunes e de questões socioeconômicas, afinal esse público está mais exposto a sobrecarga de tarefas, burnout, violência doméstica…
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