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Entrevista: por que o número de mortes por coronavírus está subestimado

O epidemiologista Paulo Lotufo mostra como o cenário real da pandemia de Covid-19 é diferente do desenhado pelos dados oficiais — e oferece uma solução

Por Theo Ruprecht
Atualizado em 3 fev 2021, 10h09 - Publicado em 1 Maio 2020, 18h13
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  • O número oficial de mortes atribuídas ao coronavírus (Sars-CoV-2) que você vê todo dia nos noticiários é o do total de pessoas com diagnóstico confirmado de Covid-19 que vieram a óbito. Embora isso pareça lógico, alguns cientistas afirmam que esse método minimiza consideravelmente o impacto da pandemia, o que comprometeria medidas de saúde pública. Entre eles está o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que entrevistamos com exclusividade.

    Há vários motivos que justificam o alerta de Lotufo. O primeiro: os testes que confirmam o diagnóstico dessa doença costumam ser receitados para quem apresenta sintomas respiratórios. “Mas o tempo foi mostrando que o coronavírus pode afetar o coração e causar trombose, que leva ao AVC, e insuficiência renal”, diz Lotufo. Em outras palavras, algumas das mortes por essas razões, embora provocadas por esse agente infeccioso, não estariam entrando na conta.

    Além disso, há uma dificuldade de obter testes para avaliar todos os pacientes internados com sintomas que sugerem a presença do coronavírus. Por fim, a sobrecarga imposta pelo Sars-CoV-2 ao sistema de saúde pode provocar mortes por falta de assistência básica ou por medo de ir ao hospital, o que também não é computado nas contas dos governos.

    Um estudo publicado no periódico científico The New England Journal of Medicine ressalta esse último ponto. Ao analisar dados de 15 hospitais da Itália entre 20 de fevereiro a 31 de março de 2020, os pesquisadores notaram uma média de 13,3 admissões por dia em decorrência de infarto. O número é 30% menor em relação ao mesmo período de 2019.

    Como a quantidade de ataques cardíacos tende a ser constante entre os anos, essa redução indica que menos gente com infarto está chegando aos hospitais — seja por falta de ambulância ou leitos, seja por receio de ir para um ambiente onde o risco de infecção por coronavírus é maior. E, de novo, isso não fica registrado nos números oficiais de mortes atribuídas à pandemia.

    Qual a proposta de Paulo Lotufo e de outros especialistas para realmente enxergar o impacto da Covid-19? Comparar, semana a semana, a mortalidade em geral de 2020 com a de anos anteriores, quando o coronavírus não assolava a população.

    “Se você excluir as mortes violentas, como as de acidentes de carro, o padrão de mortalidade é muito parecido de um ano para o outro”, revela Lotufo. Ou seja, um crescimento anormal de falecimentos certamente teria a ver com a pandemia, direta ou indiretamente. Essa estratégia foi defendida em um artigo publicado no The Lancet.

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    Para ter ideia, um cálculo feito pelo jornal Financial Times estima que o número de mortes pode ser 60% maior do que o reportado oficialmente. A Organização Mundial da Saúde contabilizou 224 172 óbitos causados pelo vírus em questão até o 1º de maio.

    Confira, a seguir, as ponderações de Lotufo sobre esse cálculo que estima o excesso de mortes por semana. Na entrevista, ele também traz suas impressões sobre a realidade brasileira e o que devemos esperar nos próximos dias:

    SAÚDE: Como o seu trabalho mudou após a pandemia?

    Paulo Lotufo: eu sou médico e professor da Faculdade de Medicina da USP. Tenho responsabilidades tanto na parte assistencial como no hospital universitário e também na pesquisa. Quando começamos a ver, no início de março, como a situação estava séria, tivemos que tomar atitudes sérias.

    Começamos a desativar os centros de pesquisa, levando as pessoas para trabalhar em casa. Essa foi a primeira atitude. Enquanto isso, na parte assistencial o pessoal foi se preparando para enfrentar a pandemia no front.

    Aí, o meu médico determinou que eu deveria entrar em isolamento total, pela idade e por condições de saúde. Eu não poderia ficar na linha de frente. Para mim foi doloroso, porque você sempre quer estar lá. Mas eu tive que entender. Desde então, eu me encontro em casa e trabalhando. Acho que agora trabalho mais do que em dias normais.

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    No Twitter, o senhor escreveu que “os grandes epidemiologistas do momento são os coveiros e os escrivães”. Por quê?

    Houve uma interpretação de que a Covid-19 seria mais uma espécie de gripe. Ela basicamente iria atingir o sistema respiratório alto e eventualmente causar uma pneumonia. Era isso o que estava sendo pensado no início.

    Mas o tempo foi mostrando que o coronavírus atinge não somente o sistema respiratório, mas tudo. Ele pode afetar o coração, causar trombose, que leva a AVC, insuficiência renal… A revista Science, em um editorial, disse que o vírus atacava da ponta do cabelo ao dedão do pé. É uma hipérbole, mas mostra que há um impacto muito maior.

    Aí começou a se observar um número excessivo de mortes em 2020, mesmo considerando os óbitos reportados por sintomas respiratórios. E não é brincadeira: quem chamou atenção para isso foi o pessoal de serviço funerário de vários países. “Nossa, estamos enterrando muito mais gente”.

    E estavam enterrando mais gente do que o normal mesmo considerando os cadáveres com morte confirmada por Covid-19. Aí começou uma pesquisa em todos os lugares do mundo. E conseguimos comprovar também aqui em São Paulo que realmente há um excesso de mortalidade atribuído a essa pandemia.

    Se você excluir as mortes violentas, como as de acidentes de carro e outras coisas, o padrão de mortalidade é muito parecido de um ano para outro. E há uma periodicidade. A doença cardiovascular, que mais mata, tem um pico de mortes em junho e julho. E o que vimos agora foi um aumento imenso e precoce dessas mortalidades cardíacas.

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    Então esses relatos de cemitérios sendo ampliados desenham uma situação mais grave do que os números oficiais mostram?

    Quando você vê tudo que se passou na Itália, em Nova Iorque, você vê a gravidade. Para mim, o exemplo mais terrível foi em Guayaquil, no Equador. As pessoas não tinham onde enterrar. E agora temos Manaus em uma situação terrível, Rio de Janeiro com imagens fortes. Vamos passar um período muito duro e triste, de perda de muita gente.

    Qual a magnitude da subestimação de mortes então?

    Isso vai variar no tempo e de local para local. Eu posso dizer que, para São Paulo, nós vimos que o número é por volta de 170% maior.

    Quais as vantagens teríamos se adotássemos esse método de acompanhar a pandemia pelo excesso de mortalidade geral?

    A grande discussão do momento é como fazer pra sairmos dessa situação. Sairmos do isolamento. Eu acho que trabalhar com o excesso de mortalidade seria um ótimo indicador. Estava vendo dados da Itália e Espanha. Eles estão tendendo para chegar a um padrão normal de mortalidade. Esse seria o momento de começar a pensar em flexibilizar. Mas esse é só um fator que deveria influenciar nessa decisão.

    O outro é a quantidade de leitos disponíveis para o atendimento da insuficiência respiratória aguda provocada pelo coronavírus. Porque a batalha está sendo ganha na prevenção, via isolamento, e no tratamento adequado da doença. Onde há estrutura, há menor mortalidade.

    Há desafios de avaliar a situação por excesso de mortalidade?

    Os dados sobre mortalidade deveriam estar disponíveis e serem analisados no dia a dia. As pessoas acompanham como está o valor do dólar, a bolsa. Um monte de gente que não vai viajar ou comprar dólar acompanha isso aí, mas a gente desconhece nossas taxas de mortalidade. Eu já vi prefeito que não tinha a mínima ideia de quais são os números de morte na cidade dele.

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    E não é tão difícil. É um dado fácil de obter. Outro dado importante é o de internações. Mas esses números não são tão simples de conseguir, por qualquer doença. O número de mortes é muito mais fácil.

    Como o senhor vê os relatos de que teria muita gente morrendo em casa por medo de ir ao hospital, mesmo quando apresenta sintomas sérios?

    Eu acho que é bem provável que isso esteja acontecendo. Não dá para ter certeza, mas é provável. Isso você conseguiria inferir por meio dos atestados de óbito. Porque esse documento mostra o local onde ocorreu a morte: se foi no hospital, se foi na rua, se foi em casa, se foi no IML. Aí você compara com outras datas equivalentes. Não é um dos dados mais consolidados, mas daria para ver, sim.

    O Brasil está adotando uma postura de regionalizar o isolamento social. Um lugar faz, o outro não faz. Isso é positivo?

    Tem gente que acha que o vírus respeita fronteira, bate continência para general, respeita hierarquia. Ele não respeita nada. Tem que ter um controle global. O governo federal fica falando de ser um país muito grande, que justificaria essa regionalização. Mas justamente por ser muito grande precisaríamos ter muito cuidado.

    Veja o que está acontecendo com duas cidades: Belo Horizonte (MG) e Blumenau (SC). O prefeito de Belo Horizonte vem sendo atacado por estar muito rigoroso. E o pessoal fala: “mas aqui não está tendo caso”. Mas é justamente por isso!

    Aí, em Blumenau, eles flexibilizaram e, em poucos dias, dobrou o número de casos. O que está acontecendo em Santa Catarina vai transbordar para São Paulo de novo, vai descer para o Rio Grande do Sul, vai chegar à Argentina, que está fazendo um trabalho muito bom.

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    Na maioria do planeta, não há discussão sobre se devemos ou não isolar a população na fase aguda da epidemia. Isso é consensual. Mas aqui há um debate acalorado sobre a necessidade disso.

    Tudo isso se chama Jair Bolsonaro. Se não existisse Jair Bolsonaro na presidência, estaria todo mundo unido. O presidente da Argentina, Alberto Fernández, foi eleito com margem estreita, oposição forte, e uniu o país rapidamente. Ele vai na TV, mostra os gráficos, mostra como estão bem melhores do que o Brasil.

    É bastante comprovado que os locais que mais votaram no Bolsonaro são os locais onde estão fazendo menos isolamento.

    A primeira semana de maio tem sido colocada como o possível pico de casos. O senhor concorda com isso?

    Olha, eu vou ser esperto. Eu vou falar do pico depois que ele passar. Não tem base para a gente fazer essa projeção específica. Se você for anotar o que todo mundo projetou de quando seria o pico, vai ficar chato. (risos)

    E isso segue a mesma lógica sobre quando relaxar as medidas de isolamento. Precisamos acompanhar os dados.

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