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“Estamos criando cientistas astronautas”, diz brasileiro que vai ao espaço

O pesquisador Alysson Muotri, que usa minicérebros para estudar autismo há mais de uma década, poderá fazer experimentos na Estação Espacial Internacional

Por Ingrid Luisa
Atualizado em 26 jul 2023, 19h50 - Publicado em 26 jul 2023, 17h13
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  • Um anúncio feito pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) movimentou a comunidade científica nas últimas semanas: pela primeira vez, um pesquisador brasileiro fará experimentos direto da Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês).

    O escolhido para essa façanha foi o biólogo e neurocientista Alysson Muotri, professor da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), nos Estados Unidos.

    Muotri está na linha de frente da inovação científica com seus modelos organoides, os chamados “minicérebros”, que possibilitam estudar melhor alterações genéticas referentes ao neurodesenvolvimento.

    Os minicérebros são aglomerados de neurônios criados em laboratório por meio de outras células do corpo “reprogramadas”. É um sistema vivo, que imita o funcionamento do cérebro. Eles são usados hoje no estudo de várias patologias.

    Não é a primeira vez que seus modelos vão ao espaço: o cientista já os enviou em missões de 2019, 2020 e 2022. A mais recente incluiu também minicérebros autistas, o principal campo de pesquisa de Muotri.

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    Os experimentos visam analisar como a microgravidade (também chamada de gravidade zero) pode alterar o cérebro.

    “Conseguimos revelar uma série de características que não eram perceptíveis na Terra, mas que se acentuam na microgravidade”, explica Muotri. “Isso permite entender melhor o funcionamento do órgão”, completa.

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    As pistas valiosas dos experimentos in loco ajudam a compreender, por exemplo, o que acontece com astronautas que passam muito tempo em gravidade zero, e pensar em soluções para protegê-los.

    “Baseado nas missões anteriores com minicérebros, se sabe hoje que há um envelhecimento acelerado das células nervosas em microgravidade. O mecanismo ainda não está definido, mas será estudado nas próximas viagens”, conta o pesquisador.

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    Também há vantagens para a pesquisa de condições do neurodesenvolvimento, como autismo e TDAH. “Depois que os minicérebros passaram pela microgravidade, começamos a revelar uma série de alterações celulares que estavam escondidas”, afirma Muotri.

    Isso permite não só um entendimento melhor do processo que leva ao autismo, mas também de formas de tratamento. “Estamos descobrindo, por exemplo, vias moleculares que poderiam ser alvo de novos fármacos para autistas nível 3”, afirma.

    Quando questionado sobre o que de concreto já foi descoberto nas missões anteriores, ele guardou o segredo:

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    “Descobrimos coisas muito interessantes, mas nada foi publicado ainda. O que posso adiantar é que a experiência deu uma nova perspectiva sobre o aspecto inflamatório das células cerebrais, o que era impossível da gente ver aqui na Terra”, conta.

    Lembrando que Muotri é claro: um possível tratamento para o autismo é direcionado apenas aqueles que querem e precisam.

    “Existem autistas que são independentes, têm sua própria vida, e não querem tratamento, mas inclusão, e eles estão certos. Os possíveis remédios que pesquisamos são para aqueles nível 3, severos, com comorbidades sérias. Meu próprio filho tem convulsões diárias, e é esse tipo de autismo que requer um tratamento”, explica.

    Limitações

    Apesar dos avanços, as análises até agora foram limitadas: cientistas capacitados não conseguiam avaliar a situação dos minicérebros e realizar intervenções in loco.

    Das primeiras vezes que viajaram ao espaço, os minicérebros foram em um contêiner do tamanho de uma caixa de sapato, que abrigava os organoides e uma bateria que os nutria.

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    Os astronautas apenas carregavam as baterias, mas não sabiam analisar adequadamente as alterações que ocorriam nos modelos.

    Muotri até se ofereceu para treinar os astronautas para que mais experimentos fossem feitos, mas daí surgiu a ideia do próprio cientista ir ao espaço.

    +Leia Também: O começo do fim

    Cérebros recriados para estudar o autismo

    Biólogo com doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), Muotri sempre se interessou pelo neurodesenvolvimento humano.

    Ele acabou focando suas pesquisas em entender melhor o transtorno do espectro autista (TEA), principalmente as alterações que levam ao nível 3 da condição  — aquele em que as pessoas tem alto grau de dependência e baixa funcionalidade.

    O primeiro sujeito de estudo dele, e também o mais comum, foi o animal. Já como pesquisador de pós-doutorado nos Estados Unidos, Muotri se especializou profundamente na anatomia do sistema nervoso dos camundongos, mas não conseguiu avanços.

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    Parecia um beco sem saída. Nenhum modelo era bom o suficiente para estudar a complexidade do autismo. Mas aí surgiu uma luz, vinda do outro lado do mundo:

    “Eu tive a ideia de usar um modelo humano assim que eu vi a palestra do cientista japonês Shinya Yamanaka”, conta.

    +Leia Também: O papel da neurocirurgia na doença de Parkinson

    Yamanaka foi responsável por uma revolução na ciência. Em 2006, ele e sua equipe conseguiram transformar células somáticas (as responsáveis pela formação dos nossos tecidos e órgãos) de um camundongo em células embrionárias, capazes de se diferenciar em qualquer tipo de célula.

    Elas foram batizadas de células-tronco pluripotentes induzidas (iPS). Em 2007, a equipe chegou ainda mais longe: conseguiu transformar uma célula da pele humana em iPS.

    Ou seja: seria possível pegar qualquer célula, transformá-la em iPS, e, a partir dali, fazê-la se transformar em um outro tecido do organismo humano. Bingo.

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    “Ele estava pensando em transplante, mas eu pensei imediatamente em aplicar a tecnologia para o autismo, recriando células do tecido nervoso”, conta.

    Dito e feito: em 2010, Muotri criou o primeiro modelo humano, a partir de células somáticas de uma pessoa autista. Mas, claro, a invenção demorou para se aprimorar, e precisou de anos para evoluir ao que temos hoje, que são tecidos cerebrais, coloquialmente chamados de minicérebros.

    E em 2019 ele e sua equipe conseguiram o avanço pioneiro: fazer esses minicérebros realmente funcionarem como o cérebro humano, tendo conexões neurais elétricas.

    “A partir disso criamos um modelo de estudo para o autismo que é humano, tem a genética do autista e simula as alterações de conectividade, de processamento cognitivo e de desenvolvimento do órgão em laboratório”, vibra o cientista.

    +Leia Também: A contribuição da investigação genética no diagnóstico do autismo

    Remédio para Rett

    Desde então, milhares de laboratórios do mundo inteiro usam a tecnologia dos minicérebros para estudar o autismo e outras condições do neurodesenvolvimento.

    E já vemos avanços: no início deste ano, a Agência Regulatória dos Estados Unidos (FDA) aprovou o primeiro medicamento para a síndrome de Rett, que já foi considerada um tipo de autismo. E todo o estudo para o desenvolvimento dela foi feito em minicérebros.

    Essa doença é um distúrbio que se caracteriza pela regressão das funções neurológicas e motoras. Em média, até os 18 meses de idade, a progressão da criança parece normal.

    Depois, contudo, as habilidades adquiridas regridem ou estagnam. A criança pode perder noções de comunicação antes adquiridas e começar a apresentar movimentos repetitivos com as mãos.

    Estudos demonstraram que, à medida que a idade avança, há um comprometimento da comunicação entre os neurônios, o que interfere diretamente no desenvolvimento. A medicação aprovada, DAYBUE (trofinetide), reduz os sintomas da doença.

    +Leia Também: Por que precisamos falar sobre a Síndrome de Rokitansky?

    Hoje, Rett saiu do espectro autista, por ser causada por uma alteração em um único gene, e ter uma progressão semelhante em todos os casos. Isso não ocorre com o autismo, que está ligado a mutações em mais de 180 genes e se manifesta de diversas formas.

    Com os mini-cérebros, contudo, Muotri acredita que será possível trabalhar com diferentes variantes genéticas envolvidas no TEA e dividir o espectro em subtipos mais refinados.

    +Leia Também: “Me descobri autista depois do diagnóstico do meu filho”

    Cientistas astronautas

    Como comentado no início da reportagem, os astronautas da ISS não sabiam bem analisar os minicérebros. Claro, nem é a função deles.

    Eles até participam de experimentos conduzidos na estação, mas com tarefas mais simples: plugar algo na tomada, tirar uma foto, apertar um botão, etc.

    Mas, para se entender melhor as alterações nos modelos organoides, é preciso conduzir uma série de ensaios moleculares e celulares sofisticados. Daí surgiu a ideia de que Muotri fosse em pessoa. 

    “O olhar e manuseio apurados de um cientista trará uma benefício enorme para as pesquisas”, opina Muotri. A expectativa é que descobertas que levariam anos sejam feitas mais rapidamente. 

    Como preparação para a viagem, o pesquisador vai passar por um treinamento físico, técnico e psicológico.

    O que estamos criando agora é uma nova classe de astronautas, que são os cientistas astronautas”, diz, empolgado, o pesquisador.

    A perspectiva é que a missão de Muotri ocorra em 2024, mas as datas ainda estão sendo definidas.

    “Nunca houve algo do tipo na ISS. Fico feliz do Brasil ter acenado uma perspectiva de participar disso, seremos pioneiros”, finaliza o pesquisador.

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