O fruto proibido de Adão e Eva, o maná de Moisés, a multiplicação do pão e do peixe, a última ceia de Jesus… A Bíblia está recheada de passagens em que os alimentos fazem papel de protagonista ou coadjuvante. Mas o mais curioso é notar que, nos últimos anos, é o universo da nutrição que está tomando para si muito da lógica e dos jargões comuns na prática religiosa. Comidas passaram a ser santificadas ou demonizadas. Dietas milagrosas pululam aos quatro ventos. A ingestão de alguns ingredientes ganhou status de pecado para a saúde, enquanto a de outros leva a reputação de nos livrar de todos os males.
Essa face maniqueísta da nutrição é o ponto de partida do livro A Mentira doGlúten e Outros Mitos sobre o Que Você Come (Citadel Grupo Editorial), escrito pelo filósofo Alan Levinovitz, professor da Universidade James Madison, nos Estados Unidos. A obra, recém-lançada no Brasil, critica a falta de embasamento científico dos gurus das dietas, que acumulam fama e dinheiro prescrevendo soluções miraculosas para emagrecer e ter uma vida equilibrada. O filósofo aponta que, nos últimos anos, ninguém foi tão apedrejado nesse terreno quanto o glúten, presente em grãos como trigo, cevada e centeio.
Leia também: Há motivo para aderir às dietas low carb?
O cardiologista americano William Davis, por exemplo, escreveu um livro inteirinho só para mostrar por que deveríamos manter a proteína – e todas as suas fontes – longe da mesa. Em Barriga de Trigo (Editora Martins Fontes), com mais de 3 milhões de exemplares vendidos, Davis argumenta que a versão moderna do cereal passou por cruzamentos que teriam mudado completamente sua estrutura genética. “Isso aumentou a carga de gliadina, um dos componentes do glúten, que se liga a receptores cerebrais e causa dependência por comida”, defende o médico. A teoria é, de fato, instigante, mas carece de comprovações e do apreço da comunidade científica. E saiba que essa é apenas uma das denúncias de Davis. A proteína das massas é acusada por ele e outros profissionais de provocar uma infinidade de doenças – de obesidade a Alzheimer. De novo, sem provas categóricas.
Na esteira dessa onda de testemunhos, celebridades anunciaram em capas de revistas que cortar o glúten é a receita da beleza e do sucesso. Aí a onda virou um tsunami. “As pessoas admiram e copiam os famosos, pois gostariam de ser como eles”, analisa Levinovitz. O apelo chegou à indústria e ao mercado: o segmento dos produtos livres de glúten já movimenta 5 bilhões de dólares anuais nos Estados Unidos – ainda não há dados confiáveis sobre o montante no Brasil, mas a tendência é de crescimento. Levantamentos americanos calculam que um terço dos cidadãos quer abolir oglúten do cardápio, número que se mostra idêntico na América Latina. Mas será que essa multidão precisa mesmo partir para uma dieta restritiva sem macarrão, pão e pizza?
Leia também: Cevada baixa o colesterol
O glúten já foi condenado, e nesse caso por razões médicas, a ser excluído da dieta de um grupo específico de pessoas. Elas têm a chamada doença celíaca. Nessas circunstâncias, quando se ingere a proteína, há uma resposta anormal e exacerbada do sistema imune. No fim, sobra para o intestino delgado: as estruturas responsáveis por absorver os nutrientes se atrofiam. “O quadro costuma aparecer ainda na infância e tem como sintomas diarreia, distensão abdominal e baixo peso”, lista Maria do Carmo Friche Passos, presidente da Federação Brasileira de Gastroenterologia. Exames de sangue e endoscopia são utilizados para fechar o diagnóstico.
Se não for contido, o mau aproveitamento dos nutrientes provocado pela doença tem repercussões sérias, como anemia e osteoporose. “E a única forma de controlar o problema é eliminar os produtos com glúten”, prescreve o gastroenterologista Alessio Fasano, diretor do Centro de Pesquisa em Doença Celíaca do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, e autor do novo Dieta sem Glúten (Editora Madras). Convém destacar: só 1% da população mundial é celíaca – número que não subiu nem caiu nos últimos tempos.
O pão (sem glúten) de cada dia
Mais recentemente, o que ganhou destaque e virou objeto de discussões é outra manifestação: a sensibilidade não celíaca ao glúten. Ela apresenta sinais parecidos com a doença celíaca, como dor de barriga, inchaço e diarreia. Porém, os resultados dos testes não demonstram alterações no intestino. “Nesses episódios, não encontramos sinais de uma reação imunológica”, conta a gastroenterologista Lorete Kotze, professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Enquanto a doença celíaca foi descoberta há 129 anos, não faz nem cinco que a sensibilidade recebe atenção dos médicos. “O ser humano sentiu desconforto abdominal por muito tempo, mas não tínhamos um nome para isso”, raciocina o gastroenterologista Peter Gibson, da Universidade Monash, na Austrália. O pesquisador ficou conhecido em 2011 ao publicar os primeiros experimentos sobre a existência da nova condição. Dois anos depois, Gibson repetiu o trabalho para provar os achados iniciais.
Ele recrutou 37 pacientes que reclamavam de mal-estar após a ingestão de massas e companhia. Os voluntários foram divididos em três grupos, que comiam refeições diferentes. O primeiro passou a devorar bastante glúten. A segunda turma ingeriu pequenas doses, e a terceira não recebeu nada da proteína. Importante: ninguém sabia em qual time tinha caído.
Após três semanas, todos os integrantes relataram melhora, independentemente da dieta que realizaram. Apenas 8% sofreram realmente algum efeito do glúten. Os experts começaram a se perguntar se não há um fator psicológico por trás da sensibilidade. “Estamos conduzindo quatro estudos a esse respeito e acreditamos que mais de 90% dos sujeitos com alimentação sem glúten se sentem bem por outros motivos, e não pela exclusão da proteína em si”, revela Gibson.
Apesar do provável fator psicológico, não dá para negligenciar a sensibilidade não celíaca, um problema que inspira cuidados e atingiria 5% da população. Estudiosos trabalham para entender o estrago e explicar em detalhes o que acontece no intestino dessa gente. Uma das principais teorias dá conta de que, em pessoas predispostas, o glúten ativa uma inflamação nas bandas digestivas. E a flora intestinal, conjunto de bactérias que nos ajuda a quebrar os nutrientes e funciona como uma barreira a invasões externas, parece ter um papel decisivo nesse processo. “Se ela está desequilibrada e o número de micro-organismos ruins é superior ao dos bons, o risco de complicações desse tipo sobe”, diz o cirurgião do aparelho digestivo Nelson Liboni, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista.
Perdoai as ofensas ao intestino
Há vertentes da ciência apostando que o glúten não é o verdadeiro culpado pela sensibilidade. Uma experiência da Universidade Johannes Gutenberg, na Alemanha, revela que os inibidores de amilase tripsina (ou ATI, na sigla em inglês), outra proteína presente no trigo, é quem cutuca as células de defesa e dá início à bagunça inflamatória. As observações foram feitas com amostras de células na bancada do laboratório e em testes com cobaias. “Os estudos são preliminares, mas mostram que os ATIs são um potencial causador da condição”, concorda Gibson.
Um segundo estudo, este da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, indica que a porção de ATI aumentou bastante nas espécies de trigo modernas. Isso porque a presença da proteína confere uma proteção contra pragas que destroem as plantações. Quanto maior a quantidade dela, melhor – pelo menos se o assunto é produtividade na agricultura. Resta saber se as porções extras de ATI afetam mesmo o organismo de quem tem um intestino mais sensível por natureza.
Carboidratos de difícil digestão, conhecidos pela sigla FODMAPs, também estão sob custódia. Quando a gente consome esses alimentos, eles fermentam e elevam o volume de líquidos no abdômen. É como se pesassem na barriga. Só que, em sujeitos diagnosticados com a síndrome do intestino irritável, os efeitos são piores e levam a gases, cólicas, constipação ou diarreia – sintomas praticamente iguais aos da sensibilidade não celíaca. Entre os FODMAPs estão melancia, aspargo, alho e pistache. Adivinhe o que mais integra a lista. Ponto para quem pensou em trigo, centeio e cevada. “Como nem todos os incômodos abdominais são iniciados pelo glúten, é essencial procurar o profissional de saúde e fazer uma avaliação completa”, recomenda a nutricionista Bárbara Rita Cardoso, do Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª Região (SP/MS).
Aliás, todas as fontes ouvidas por SAÚDE rezam a mesma recomendação: não dá pra tirar o glúten antes de consultar o médico e conferir o que está acontecendo. “Cortar a proteína sem orientação até atrapalha o diagnóstico de doenças, porque a parede intestinal se recupera parcialmente e deixa de apresentar alterações nos exames”, avisa a professora Lorete Kotze. No caso da sensibilidade, o glúten é retirado, mas não para sempre. É possível que, no futuro, o desconforto se abrande e as massas voltem a figurar no cardápio sem problemas.
Discussões à parte, fato é que o mercado dos produtos sem a polêmica proteína está em ascensão. Em 2010, a Glúten Free Brasil, principal feira do setor no país, contava com oito expositores e uma média de 100 participantes. Os números saltaram para 55 empresas envolvidas e 1 500 visitantes em 2014. A quantidade de opções a celíacos cresceu 400% em 15 anos e, de acordo com dados da Nielsen, empresa que faz levantamentos econômicos e populacionais, os jovens estão mais dispostos a comprar esse tipo de alimento que seus pais e avôs.
Essa febre se justifica? Ora, se 1% da população é celíaca e 5% têm sensibilidade, por que 30% querem fugir do glúten? “Isso é explicado pela ideia de que cortar a proteína ajuda a emagrecer”, interpreta a endocrinologista Maria Edna de Melo, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. A estratégia até funciona – mas o glúten não tem nada a ver com isso. “A pessoa para de ingerir carboidratos, que são calóricos, o que ajuda a diminuir as medidas”, afirma a médica. O decréscimo na balança é consequência da troca por comidas leves e, às vezes, mais saudáveis.
Só que é preciso tomar cuidado com os desfalques da dieta livre de glúten, uma vez que os carboidratos são a base da alimentação. “Esse regime é pobre em fibras e vitaminas do complexo B, que são essenciais para a saúde”, aponta a nutricionista Eliana Giuntini, do Centro de Pesquisa em Alimentos, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Na contramão, é cabível fazer uma autocrítica e avaliar se o consumo de massas não está passando dos limites. O exagero, sim, patrocina o ganho de peso e outras pragas metabólicas.
Se for necessário tirar o glúten, os especialistas orientam caprichar em frutas, legumes e hortaliças para não sofrer com prejuízos nutricionais. E vale ficar de olho nos rótulos: um biscoito glúten free chega a ter o triplo de calorias da versão tradicional. “A fim de compensar mudanças no gosto e na textura, muitos fabricantes adicionam gordura e açúcar na receita”, esclarece Eliana. O preço também não é nada convidativo: o item é até 150% mais caro nas gôndolas dos supermercados.
Mas livrai-nos do mal (se ele existe)
Ok, não faz sentido eliminar o glúten sem motivos médicos, mas será que celíacos e sensíveis terão de exorcizar para todo o sempre o trigo e outros cereais? Talvez não. Há promessas à vista. Pesquisas mapeiam regiões do genoma humano ligadas à enfermidade. Cápsulas que quebram o glútenantes que ele chegue ao intestino vêm apresentando resultados satisfatórios nos testes. Um grão modificado geneticamente para ter menos dessa proteína é objeto de investigações na agronomia. “Ainda não há nada de concreto, mas existem perspectivas animadoras”, diz Lorete Kotze, pioneira no estudo da doença celíaca no Brasil.
Enquanto as boas-novas da ciência não viram realidade, convém deixar clara a resposta à pergunta que serve de título à reportagem. Glúten não pode quando a doença celíaca ou a sensibilidade são diagnosticadas. E pode para todos aqueles que não passam mal após engolir macarrão, pão, pizza, cerveja… Dietas da moda vêm e vão. E acreditar em seus efeitos milagrosos é um auto de fé sem garantia de recompensa.