Leishmaniose: desde 2015, Brasil registrou mais de 130 mil casos
Diagnóstico precoce e início imediato do tratamento reduzem os riscos de complicações e de mortes
Neste mês, a campanha Agosto Verde promove a conscientização sobre a leishmaniose. Trata-se de um conjunto de infecções consideradas rurais, mas pelo menos um tipo delas tem se tornado mais frequente em áreas urbanas nas últimas décadas.
Apesar de afetarem milhões de pessoas todos os anos em diversos países, as leishmanioses são classificadas como doenças negligenciadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
Entram nesta categoria problemas de saúde que atingem principalmente pessoas em situação de pobreza ou vulnerabilidade social, e acabam recebendo pouca atenção de governantes e da indústria farmacêutica.
Como efeito, as opções de fármacos disponíveis tendem a ser limitadas ou provocar efeitos adversos muito significativos.
Além de expandir as pesquisas em busca de melhores medicamentos e formas de prevenção, também é importante disseminar conhecimento sobre a doença.
Isso porque o diagnóstico precoce e o início imediato do tratamento reduzem os riscos de complicações e óbitos.
O que são as leishmanioses?
Doenças infecciosas que afetam humanos e animais, as leishmanioses são causadas por diferentes espécies de protozoários do gênero Leishmania.
Os parasitas são transmitidos pela picada de pequenos insetos chamados flebotomíneos, também conhecidos como mosquito-palha, tatuquira, cangalhinha e birigui.
São classificadas em dois tipos: tegumentar (ou cutânea) e visceral, com impactos para o organismo humano que vão desde lesões na pele a infecções mais profundas, estas relacionadas a um elevado risco de morte.
De acordo com a OMS, mais de 1 bilhão de pessoas vivem em áreas endêmicas, em risco de infecção.
Estima-se que, a cada ano, ocorram 30 mil novos casos da forma visceral, com uma concentração de casos em países como Índia, Sudão, Brasil e Quênia, e mais de 1 milhão de infecções de leishmaniose cutânea.
No Brasil, os dados mais recentes do Ministério da Saúde se referem à leishmaniose visceral. Entre 2015 e 2023, foram confirmados 22.622 casos e 1.916 mortes no país. Em 2022, o número de infecções chegou a 1.794.
Neste ano, até o momento, foram notificados 762 pacientes com a doença.
Já em relação à forma tegumentar, foram registradas 112.984 infecções no Brasil entre 2015 e 2021. Nos últimos três anos com informações disponíveis, 2019 a 2021, a média de casos ficou em torno de 15 mil.
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Visceral: a forma mais grave da doença
A leishmaniose visceral, também conhecida como calazar ou barriga d’água, é a forma menos frequente da doença, porém mais grave e potencialmente fatal, uma vez que afeta órgãos internos, como fígado e baço, além dos gânglios linfáticos e a medula óssea.
De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ela é endêmica em 13 países das Américas, com uma média de cerca de 3.500 casos por ano, mais de 90% deles notificados no Brasil.
Nas Américas, a Leishmania chagasi é a espécie de protozoário mais envolvida na transmissão.
Neste ciclo, o cão é a principal fonte de infecção para o inseto vetor, uma vez que o parasita se mantém nos vasos sanguíneos da pele dos animais.
Os sintomas geralmente aparecem entre 2 e 6 meses após o contato com o inseto. Os principais são:
- Febre prolongada, que pode durar mais de sete dias
- Falta de apetite
- Perda de peso
- Fraqueza
- Aumento do volume abdominal, devido ao crescimento do fígado e do baço
O diagnóstico inclui a realização de técnicas imunológicas e parasitológicas. O primeiro é feito a partir da detecção de anticorpos, já o segundo investiga a presença do parasita em material biológico obtido principalmente da medula óssea.
Existe tratamento para a doença e, quanto antes ele começa, melhor. A definição da terapia depende da gravidade e do quadro clínico de cada paciente.
Antimicrobianos chamados de antimoniais costuma ser utilizados: anfotericina B, isetionato de pentamidina e miltefosina, que só devem ser administrados a partir de prescrição médica.
Urbanização da leishmaniose visceral
O primeiro caso da doença no Brasil foi registrado em 1913, em um indivíduo de Boa Esperança, no Mato Grosso.
Curiosamente, foi a partir de um estudo da distribuição da febre amarela no país que especialistas encontraram, depois disso, outros 41 casos positivos para Leishmania, identificados em amostras de vítimas da doença das regiões Norte e Nordeste.
Após esse levantamento, o mosquito flebotomíneo foi descrito como espécie vetora e os primeiros casos da infecção em cães identificados.
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Desde seu surgimento, a doença era mais restrita às zonas rurais. Mas, nas últimas décadas, ela tem se urbanizado.
Entre as explicações para o fenômeno estão transformações no ambiente provocadas pelo homem, como a expansão das áreas urbanas e agrícolas.
Fatores como migração, pressões econômicas e sociais, urbanização crescente e secas periódicas levaram a um aumento das zonas endêmicas e ao aparecimento de novos focos da doença.
Outro ponto associado à transmissão nas grandes cidades é a alta capacidade de adaptação dos flebotomíneos, como explica a entomóloga Elizabeth Ferreira Rangel, pesquisadora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
“O vetor Lutzomyia longipalpis [espécie de mosquito] é muito competente em se integrar ao ambiente urbano devido à sua composição genética. Um quintal ou horta pode ser abrigo do inseto em cidades grandes”, afirma Elizabeth.
Ações realizadas em Belo Horizonte levaram ao declínio no número de infecções nos últimos cinco anos, tendo sido registrados apenas sete casos em 2023, ante 22 no ano passado e 30 em 2021.
O estado de Minas Gerais teve 194 notificações e 29 mortes em 2022. Neste ano, já são 77 diagnósticos e nove óbitos.
Em São Paulo, 119 dos 645 municípios do estado registraram casos de leishmaniose visceral em humanos em 2022, de acordo com dados da secretarial estadual de Saúde.
De janeiro até o momento, houve nove casos no estado do Rio de Janeiro, segundo a Secretaria de Estado de Saúde. Desses, cinco ocorreram na capital, um em Arraial do Cabo e três em Volta Redonda. Em 2022, foram 12 infecções no estado fluminense.
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Leishmaniose tegumentar ou cutânea
Essa é a forma mais frequente do agravo no Brasil. Também é conhecida por nomes como úlcera de Bauru, nariz de tapir, botão do oriente e ferida brava.
Em 2023, até o momento, houve um total de 26 casos no Rio de Janeiro, sendo dois na capital. No ano passado, o estado contabilizou 52 notificações.
Já o estado de São Paulo, que apresenta dados de janeiro a junho, soma 124 infecções, com 28 pacientes na capital paulista. Em 2022, foram notificados 124 casos no estado.
Pelo menos sete espécies de leishmanias estão associadas à infecção no Brasil, sendo as mais importantes Leishmania (Leishmania) amazonensis, L. (Viannia) guyanensis e L.(V.) braziliensis.
Os sintomas incluem lesões na pele e mucosas (do nariz, boca e garganta), com aparência de úlceras. Cada paciente pode manifestar um quadro diferente, de uma única ferida a múltiplas e espalhadas pelo corpo.
Indivíduos com impactos no nariz podem ter sangramentos, entupimento, coriza e o aparecimento de crostas. Quando a enfermidade atinge a garganta, é comum surgir tosse, rouquidão e dor ao engolir.
Da infecção até o início dos sinais pode levar um tempo de 2 a 3 meses. O chamado período de incubação varia bastante, podendo ser mais curto, como em torno de duas semanas, até prazos mais longos de dois anos.
Para a realização do diagnóstico é coletada uma amostra de lesão para análise laboratorial.
O material pode ser obtido a partir de diferentes técnicas, como raspagem, punção ou biópsia, que consiste na retirada de fragmentos do tecido. A detecção também inclui outros métodos laboratoriais mais complexos.
O tratamento é feito a partir de administração de medicamentos específicos, como o miltefosina, de uso oral, oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
O papel dos cachorros no ciclo da leishmaniose
O aparecimento da doença em uma região está relacionado a um conjunto de fatores.
Primeiro, é preciso que o inseto pique um hospedeiro contaminado com o protozoário, como os cães. E que, depois, o inseto encontre uma população potencialmente exposta à sua picada.
Uma das formas de cuidado voltada para os animais é a vacina, indicada para cães assintomáticos e que não apresentem diagnóstico sorológico.
O primeiro imunizante desse tipo, chamado Leishmune, foi registrado no Brasil em 2003.
Por não atender satisfatoriamente os requerimentos dos estudos da fase 3 sobre a eficácia da vacina, ele foi retirado do mercado em 2014 por decisão do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).
A segunda vacina, cujo registro no país foi obtido em 2006, foi a Leish-Tec. O imunizante teve a fabricação e comercialização suspensas pela pasta em maio deste ano. De acordo com o ministério, a determinação ocorreu após a fiscalização constatar desvio de conformidade do produto, que pode ocasionar falta de eficácia.
Consultado, o Ministério afirmou em nota que a suspensão foi cautelar e segue vigente. “O retorno da produção depende da empresa fabricante, que precisará comprovar estabilidade do produto, eficácia, segurança e adequações”, disse o Mapa.
Com a suspensão, o país está sem nenhuma vacina contra a leishmaniose canina aprovada para uso. Pesquisadores avaliam, contudo, que a suspensão não deve trazer impactos significativos no cenário epidemiológico da doença.
“A vacina é utilizada principalmente por indivíduos que têm recursos, em clínicas privadas. A determinação não interfere no contexto de transmissão que compromete mais as pessoas de média e baixa rendas. Diante do registro de casos, é importante que a esfera estadual atue com o controle químico [uso de pesticidas que atinjam o mosquito]“, afirma Elizabeth.
O Ministério da Saúde também destaca que o uso desse tipo de imunizante é restrito à proteção individual dos cães, mas não é considerado uma estratégia de saúde pública.
A argumentação da pasta é de que não existem evidências científicas que comprovem o efeito da imunização dos animais na redução da incidência da leishmaniose visceral em humanos.
Outros cuidados com os cães
Outras medidas de prevenção envolvendo os cães podem ser adotadas, como as coleiras impregnadas com repelentes que evitam picadas dos insetos vetores.
“A coleira é uma das recomendações mais importantes para prevenir a infecção em áreas endêmicas, com registros de casos confirmados da doença”, afirma Dario Zamboni, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP).
Em relação aos cachorros que já foram diagnosticados com a doença, o tratamento pode ajudar trazer melhora dos sintomas. A infecção tem um padrão de evolução lento e crônico. O período que vai da infecção ao início dos sintomas pode variar de três meses a vários anos, com média de 3 a 7 meses.
Nem todos os cães desenvolvem manifestações clínicas. Quando presentes, os sinais incluem irritação e lesões na pele, sangramento nasal, danos oculares, como conjuntivite, e outras condições menos perceptíveis, como inflamação dos músculos.
Para o tratamento, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) recomenda que sejam utilizados medicamentos registrados no Mapa, sendo proibido o tratamento com produtos para humanos. O uso inadequado pode favorecer o fenômeno da resistência, criando cepas de leishmania que podem se tornar difíceis de tratar em pessoas infectadas.
A terapia não elimina os protozoários do organismo dos cães. Assim, eles ainda podem ser uma fonte de infecção para os flebotomíneos, oferecendo riscos à saúde de humanos e de outros animais.
Neste caso, a eutanásia dos cães é recomendada pelo Ministério da Saúde como uma das formas de controle.
Colocar em prática a orientação ainda é um desafio, devido ao relacionamento afetivo entre pets e tutores que muitas vezes recusam a realização do procedimento.
Prevenção
Os flebotomíneos buscam locais úmidos, com sombra e presença de matéria orgânica para se reproduzir. Portanto, não é incomum que eles sejam encontrados em fendas de rochas, buracos e tocas de animais ou no tronco de árvores.
Assim como o Aedes aegypti, transmissor de dengue, Zika e chikungunya, o ciclo de vida do mosquito-palha conta com quatro fases: ovo, larva, pupa e adulto.
Só que, diferentemente do Aedes, que se reproduz em torno de uma semana, a evolução do vetor das leishmanioses pode variar, em média, entre 30 e 45 dias.
As fêmeas, que também são as responsáveis por picar animais e humanos, podem colocar de 40 a 100 ovos. Em geral, elas realizam uma oviposição apenas.
Nesse contexto, uma das estratégias de prevenção inclui o chamado manejo ambiental. A medida inclui a limpeza de quintais, terrenos e áreas onde vivem animais para evitar a reprodução do inseto.
Em Belo Horizonte, os casos foram reduzidos com a atuação de Agentes de Combate a Endemias, realização de coleta de sangue canino, controle químico do vetor e repasse de informações sobre a prevenção da doença.
Como proteção individual em áreas endêmicas, é orientado o uso de roupas que protejam as pernas e os braços, evitar a exposição nos horários de maior atividade do flebotomíneo, no crepúsculo e à noite nos locais onde ele costuma circular.