O uso de remédios sem eficácia comprovada para tratar a Covid-19, como a hidroxicloroquina, pode trazer efeitos colaterais sérios. O primeiro estudo nacional sobre o tema confirma a ocorrência de ao menos 631 reações adversas a medicamentos em 402 indivíduos com a infecção.
O trabalho analisou registros entre março e agosto de 2020 no Vigimed, sistema de Farmacovigilância brasileiro, que reúne notificações espontâneas de efeitos colaterais feitas por profissionais de saúde e cidadãos.
Cerca de 60% das reações foram provocadas pela hidroxicloroquina. Ela e a cloroquina, sua parente, estiveram por trás de danos graves, em especial ao coração. A azitromicina, que também já demonstrou não ter benefícios em estudos, foi associada a 10% das ocorrências. A pesquisa foi publicada no periódico Cadernos de Saúde Pública.
Conversamos com o autor principal do estudo, o farmacêutico José Romério Rabêlo, especialista da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), sobre o levantamento e o uso de fármacos off-label no combate à Covid-19. Para ele, os dados mostram apenas parte do problema, que tende a se agravar com a explosão da venda da ivermectina e outras drogas, observada depois que os dados foram colhidos.
A pedido do próprio Rabêlo, devemos informar que essa entrevista é de inteira responsabilidade dele e não expressa, necessariamente, a opinião da Anvisa.
VEJA SAÚDE: Que lições podemos tirar do trabalho? O que esses achados indicam?
José Romério Rabêlo Melo: Esse é o primeiro estudo brasileiro com os dados de notificação voluntária de reações adversas a medicamentos (RAM), ocorridos em pacientes com Covid-19, encaminhadas ao Sistema Nacional de Farmacovigilância. Nele foram identificadas as RAM associadas ao uso de medicamentos sem indicação terapêutica aprovada para o combate da doença, em especial para a hidroxicloroquina e cloroquina, pois foram os únicos associados a reações adversas graves, principalmente em pacientes idosos [o estudo foi feito com dados colhidos até agosto, período em que a ivermectina ainda não estava no centro do debate sobre o tratamento da Covid-19].
Nossos resultados indicam que, nos tempos de incerteza em que vivemos, é muito importante considerar a eficácia e a segurança aprovada em ensaios experimentais de medicamentos. Como lição aprendida neste estudo, também devemos reforçar a notificação de casos suspeitos e as análises sistemáticas dos registros, para identificar precocemente riscos e fortalecer as melhores práticas regulatórias de fármacos durante a pandemia.
É possível que haja uma subnotificação de casos de reações adversas medicamentosas relacionadas ao uso de cloroquina e azitromicina?
Sim. Inclusive deixamos isso evidente no nosso artigo, quando comentamos os dados apresentados em um estudo cearense sobre as RAM em pacientes de Covid-19 daquele estado. As notificações do trabalho não chegaram na base nacional do sistema brasileiro de farmacovigilância. Além do mais, 11 estados brasileiros não encaminharam ainda nenhum caso suspeito de RAM em seus pacientes com Covid-19.
Essa subnotificação ocorre por que os dados são obtidos, em sua maioria, pela vigilância passiva, com notificações espontâneas. O método apresenta uma boa relação custo/efetividade, no entanto a subnotificação pode chegar a 95% dos casos. Essa é uma barreira que dificulta a Anvisa a tomar medidas de intervenção mais efetivas em relação à segurança de medicamentos no Brasil.
Há planos de estudar também outras drogas do chamado “kit Covid”, como a ivermectina?
Sim. Nessa primeira análise, já foram verificadas poucas notificações envolvendo a ivermectina. No entanto, acreditamos que as próximas pesquisas tendem a identificar um número maior de reações associadas a esse fármaco. Isso porque foi a partir da divulgação maciça do “kit Covid”, no início do segundo semestre de 2020, que esse medicamento passou a ser mais consumido e muitas vezes estimulado por uma enxurrada de informações na mídia e nas redes sociais.
Essa avalanche de informações, a chamada infodemia, gera medo e confusão, levando os consumidores a uma corrida sem precedentes para adquirir os remédios que fazem parte desse kit. Entram na lista ivermectina, a nitazoxanida, além dos suplementos de zinco e das vitaminas C e D, que podem ser adquiridos sem a prescrição médica.
Segundo os dados levantados pela consultoria especializada em mercado farmacêutico IQVIA, a venda de ivermectina cresceu 466% no acumulado de 2020 até novembro, na comparação com o mesmo período de 2019. É importante destacar que a ivermectina, diferente da azitromicina e cloroquina, é vendida sem nenhum controle nas farmácias brasileiras e isso facilita ainda mais o acesso e o uso irracional desse medicamento.
Quais são os riscos para a saúde do uso de vários medicamentos combinados para casos leves de Covid-19?
O uso de cinco ou mais medicamentos ao mesmo tempo se classifica como polifarmácia. Essa prática está associada ao aumento do risco e da gravidade das RAM, da toxicidade e de erros de medicação, além de elevar os custos com a manutenção da saúde e a morbimortalidade.
No contexto da pandemia, não existe nenhuma evidência científica disponível de que qualquer medicamento, exceto as vacinas, sejam eficazes e seguros para impedir o agravamento ou prevenir o adoecimento pela Covid-19.
Além disso, já foram emitidos alertas sobre importantes efeitos colaterais da cloroquina e da hidroxicloroquina, como exemplo as reações que afetam o sistema cardíaco, como o prolongamento do intervalo QT e taquicardias. A Merck (MSD), maior fabricante da ivermectina no mundo, diante do expressivo aumento de vendas, afirmou que até o momento os dados disponíveis não suportam a segurança e eficácia desse fármaco contra a Covid-19.
Da mesma forma, a Anvisa e a Rede CoVida/Cidacs/Fiocruz se manifestaram contra os “kits” divulgados, em especial a ivermectina, e alertam a população sobre o risco do fármaco. Por isso, a OPAS recomenda que eles sejam usados apenas no contexto de estudos devidamente registrados, aprovados e eticamente aceitáveis.
Você acredita que há uma banalização do uso de medicamentos no país?
Sim. Essa banalização, no contexto da Covid-19, tem influências claras da grande quantidade de informações que circulou e circula na mídia e nas redes sociais e até mesmo pela pressão que a sociedade exerce junto aos médicos para prescrição dos tratamentos precoces.
Que conselhos daria aos profissionais que ainda prescrevem essas drogas para a Covid-19?
Na pandemia, o médico deve fazer uma análise criteriosa sobre os riscos e os benefícios dos medicamentos. Em casos de dúvidas, o ideal é procurar o Centro de Farmacovigilância de sua cidade, a Gerência de Risco ou Núcleos de Segurança do Paciente, nos hospitais, para ter maiores informações sobre os compostos e o perfil das reações adversas na sua comunidade. Em várias cidades brasileiras existem também os Centros de Informações de Medicamentos – CIM, que são unidades operacionais que proporcionam informação técnico-científica sobre fármacos de forma objetiva e oportuna.