A ivermectina é mais um entre vários medicamentos que estão sendo testados no tratamento contra o novo coronavírus (Sars-CoV-2), causador da Covid-19. No entanto, ainda não há estudos provando a sua eficácia para esse objetivo. Mesmo sem evidências científicas, uma parcela da população tem recorrido a essa estratégia para se proteger.
Vemos de tudo: gente que não é da área da saúde promovendo protocolos de tratamentos com a droga, prefeitura distribuindo kits com o remédio para prevenir a infecção ou impedir que o usuário desenvolva as versões graves da doença e até pessoas buscando a versão veterinária da substância.
Para alertar sobre os riscos do uso indiscriminado, o veterinário Marcelo Beltrão Molento, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), publicou um artigo no periódico científico One Health. Ele estuda a ivermectina há 25 anos.
Veja SAÚDE conversou com Molento sobre o remédio e sua utilização para a Covid-19. Acompanhe.
VEJA SAÚDE: Qual o uso original da ivermectina?
Molento: Ela foi descoberta como uma droga multiúso nos anos 1970. Nasceu como derivada de um processo bioquímico de fermentação a partir de um organismo natural, encontrado em um fungo numa quadra de golfe no Japão.
A partir daí, começaram a processá-la industrialmente. Identificaram diversas variantes da molécula e viram que havia uma combinação específica que demonstrava uma atividade antiparasitária fantástica.
Estamos falando de uma substância que já tinha capacidade antibacteriana e antiviral quando foi descoberta. Depois da aprovação, ela recebeu registro como antiparasitária porque a empresa entendeu que era a melhor maneira de colocá-la no mercado. Assim, deixou para trás os possíveis usos antivirais e antibacterianos sem que fossem explorados de uma forma comercial.
Em resumo, a ivermectina age contra parasitas externos, como sarna e piolho, e internos, que é o caso dos vermes.
Quais as diferenças entre a ivermectina veterinária e a indicada para seres humanos?
Se você pensar no princípio ativo em si, elas são iguais. Agora, há muita diferença na formulação como um todo.
A animal leva a droga para o tecido adiposo e permanece bem mais tempo no organismo. Ela pode ser aplicada em várias espécies: aves, suínos, equinos e ruminantes. Para cada bicho, há uma formulação própria.
Para os bovinos, por exemplo, ela é injetável. Para ovinos, temos a oral. Ela apresenta uma consistência oleosa, mais palatável. Há ainda a versão em pó para os suínos comerem junto com a ração.
Já a ivermectina humana é apresentada em forma de comprimido. Sua absorção e eliminação acontecem de forma muito mais rápida.
Ter a substância circulando no sangue por cinco dias, como ocorre muitas vezes com os animais, é impensável ao falarmos em seres humanos.
Isso significa que há perigo se uma pessoa tomar a ivermectina vendida para uso veterinário?
A ivermectina em si é uma droga segura. Mas é extremamente preocupante sair de uma linha racional de uso e partir para a utilização veterinária.
O risco é grande do ponto de vista de absorção. No caso do remédio animal oral, por exemplo, ele jamais será absorvido por nós do mesmo jeito que é pelo suco gástrico de um ruminante ou equino. Há a possibilidade de as pessoas desenvolverem até uma úlcera gástrica.
Ou pior: imagine utilizar um remédio injetável para bovinos, animais que têm um metabolismo completamente diferente? Não consigo nem pensar em um indivíduo injetando uma coisa dessas na musculatura, mas as loucuras existem. E essa fórmula oleosa, sendo absorvida lentamente, é capaz de criar nódulos, uma infecção secundária ou um abcesso.
E já vi circulando na internet que várias pessoas estão tomando essa versão veterinária porque a humana está em falta na farmácia. Falam que não faz mal nenhum. Mas é um perigo essa recomendação “boca a boca”. Se tiver algum profissional da área orientando, mesmo que informalmente, também é grave.
E a ivermectina própria para seres humanos?
Existe um frenesi por tomá-la descontroladamente como se fosse a garantia de salvação. Eventualmente, numa busca por proteção extra, o usuário engole uma caixa inteira de uma vez. Só que nós não conhecemos os efeitos do uso de forma indiscriminada.
É importante reforçar que não há estudos clínicos [em seres humanos] sobre a atuação da ivermectina especificamente na Covid-19, inclusive com intuito preventivo. Na minha opinião, achar que ela consegue controlar a capacidade do vírus contaminar alguém é esperar demais da substância.
Se o paciente consumir o remédio enquanto estiver hospitalizado, com certeza será pela decisão do corpo médico porque foi determinado em estudos in vitro que a substância pode reduzir a sobrevivência do agente infeccioso.
Esse mecanismo de ação está descrito, mas precisamos de estudos em novas fases, com testes em humanos. Nós temos mais de 20 trabalhos sendo coordenados no mundo todo hoje. Tenho acompanhado de perto as pesquisas do Brasil e da Argentina.
Por que não dá para indicar a ivermectina só com base nos estudos in vitro? E por que muitos medicamentos que mostram eficiência nessa fase são, depois, descartados para uso em seres humanos?
Dentro da rigidez do processo de registro para que um remédio seja liberado para circulação no mercado, são necessários vários testes. O estudo in vitro é a primeira fase do caminho todo.
Com os testes in vitro, você pode provar que a droga mata o agente infeccioso. É uma questão mais objetiva: saber se ela age na célula, na bactéria, no vírus ou no parasita dentro do laboratório.
O objetivo de testar in vitro é provar que existe um mecanismo de ação e que posso confiar nele para dar continuidade às próximas etapas. Mas essa fase não é suficiente para indicar um medicamento para tratar uma doença, já que, nesse momento, vemos uma interação da droga somente com o agente infeccioso isolado, e não com o organismo humano completo, que é bem mais complexo.
A partir daí, passamos para níveis mais avançados de pesquisa. Isso significa que os seres humanos são incluídos na história.
E a grande maioria das substâncias, isto é, cerca de 99,9% das candidatas a uso em tratamentos, não passam dessa fase por alguns motivos: não têm absolutamente nenhuma eficácia, possui eficácia marginal ou aparentam toxicidade.
Alguns medicamentos que se mostram promissores em uma primeira etapa podem, depois, ocasionar um efeito colateral importante e indesejado, por exemplo.
E o ramo da farmacologia humana e veterinária é extremamente exigente em relação a fatores como efeitos colaterais, absorção pelo metabolismo, complicações hormonais, intoxicação etc. Isso tudo faz com que as drogas sejam muito peneiradas. Então, não é um caminho simples, fácil nem barato.
Então, não dá para achar que a ivermectina que funciona in vitro vá obrigatoriamente ser benéfica in vivo [em seres humanos]. É apenas uma prova inicial importante que traz essa possibilidade e reforça a necessidade de estudos futuros.
A ivermectina pode interagir com outros remédios?
A interação medicamentosa é o que a gente menos conhece em relação a todas as drogas listadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com potencial para a terapia contra a Covid-19.
O que nós sabemos é que todos estão orientando que o uso seja feito apenas sob recomendação médica. O profissional tem ferramentas para avaliar as condições de saúde do paciente, principalmente aquele que tem o diagnóstico positivo para Covid-19.
Há uma extrema necessidade de aprofundar o conhecimento científico a respeito desse medicamento. É um dos alertas que faço no artigo.
Acha que há o risco de o indivíduo se proteger menos por achar que a ivermectina irá prevenir o novo coronavírus?
Existe e acho que é um risco dos mais básicos que as pessoas têm assumido. A partir do momento que se toma um medicamento com a ideia de proteção, aquele indivíduo inconsequente e egoísta, que não está pensando no próximo nem na própria família, passa a se descuidar. É triste saber dessa possibilidade.
Lembrando que, além de não sabermos se a ivermectina funciona para a prevenção, não compreendemos por quanto tempo ela faz efeito. Então, só porque você ingere três ou 10 doses, não significa que estará protegido por um mês ou 12. Não existe essa baliza. Aliás, nenhum antiviral faz isso. Ele só atua enquanto você tem a infecção.
Um levantamento realizado pela Linx, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostrou que a venda nas farmácias de anti-helmínticos, que são utilizados no tratamento de diferentes parasitoses, cresceu 14% em junho de 2020 ante 2% no mesmo mês dos dois anos anteriores. Qual sua opinião sobre esse dado, lembrando que a ivermectina faz parte do grupo?
Esse aumento é reflexo do desespero. A pessoa deseja uma proteção extra e vai buscar informações na internet. Aí, escuta e lê coisas positivas sobre o produto. Só que nós não temos dados de que esse remédio reduz a carga viral do ser humano nem evidências de que alguém tenha gerado resposta imune com seu uso.
Não há comprovação de nenhum ganho direto, como matar o vírus, nem indireto, que seria melhorar as defesas do organismo. Mas os estudos estão em andamento. E eu encorajo que mais verba seja colocada neles para que nós tenhamos resultados sólidos até o fim do ano.
O que você acredita que precisa ser feito para controlar essa procura pela ivermectina na pandemia e evitar que ela vire “uma nova cloroquina”?
Essa colocação é muito importante. Esse tema abre um leque de obrigações e necessidades amplas e urgentes.
Uma das atitudes que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) adotou foi incluir a ivermectina numa categoria de medicamentos vendidos apenas com receita. Isso demonstra cuidado e preocupação da entidade em proteger o consumidor, principalmente de overdose.
Uma coisa que falo no artigo é que também precisamos de veículos de informação para realmente ensinar sobre a segurança do medicamento, a necessidade de tomá-lo ou não e quem você deveria procurar para saber se faz sentido ingeri-lo. Precisamos de educação.