A hidroxicloroquina, remédio contra malária e doenças autoimunes, ganhou fama na última semana por seu suposto potencial para combater o novo coronavírus (Sars-Cov-2). Isso inclusive fez muita gente, de maneira irresponsável, buscar o medicamento, o que terminou em desabastecimento nas farmácias. Mas fármacos normalmente usados contra HIV, ebola, hepatite C e outras condições também estão sendo estudados como possíveis tratamentos da Covid-19.
Testar princípios ativos aprovados para outras doenças é uma maneira mais rápida de encontrar uma solução para o novo vírus. Ora, eles já são produzidos e tiveram sua segurança comprovada em estudos clínicos robustos antes de serem liberados pelas agências regulatórias. A dúvida é se teriam eficácia diante do agente infeccioso por trás dessa pandemia atual e, se sim, qual a dosagem adequada para esse fim. No mundo, uma série de estudos vem sendo feitos nesse sentido, com diferentes moléculas.
Por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou uma pesquisa global chamada de SOLIDARITY (solidariedade, em inglês). O objetivo é testar, em milhares de pacientes, quatro terapias promissoras contra a Covid-19.
Abaixo, explicamos mais sobre cada uma. Porém, vale reforçar que os benefícios precisam ser comprovados por experimentos maiores e bem controlados. Até o momento, não existem medicações indicadas para o novo coronavírus.
Ou seja, nada de buscar essas e outras opções por conta própria. Esses remédios podem acarretar efeitos colaterais sérios e já são utilizados por milhares de pessoas que precisam de verdade deles. No mais, não há qualquer evidência de que atuem de maneira preventiva — ou seja, impedindo a infecção.
Hidroxicloroquina e cloroquina
As duas moléculas, usadas no tratamento da malária e de doenças reumatológicas, possuem vias de ação parecidas. “É possível que elas tenham alguma ação no sistema imunológico, modulando a resposta do corpo ao invasor”, comenta Flavio Emery, presidente da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas (ABCF).
Uma pesquisa francesa feita com 20 voluntários mostrou resultados positivos da hidroxocloroquina na Covid-19, o que, em conjunto com um discurso do presidente americano Donald Trump, levou a uma disparada de interesse pelo medicamento.
“Há muitos estudos sendo conduzidos com ela, mas os únicos dados publicados que temos até agora em seres humanos são os do trabalho francês, que está sendo criticado pela comunidade científica”, destaca Claudio Tadeu Daniel-Ribeiro, chefe do Laboratório de Pesquisa em Malária do Instituto Oswaldo Cruz, da Fiocruz.
Entre os pontos negativos, destaca-se o fato de a investigação ter sido conduzida com poucas pessoas e dispensar ritos básicos nos testes de um medicamento. Exemplos: não houve comparação com um medicamento placebo e os resultados não foram submetidos à análise de outros cientistas antes da publicação.
Um dos principais perigos dessa pressa, ressaltam os especialistas, são os efeitos colaterais graves da droga, incluindo complicações cardiovasculares, risco de insuficiência renal e hepática e alterações na visão. “Trata-se de um medicamento tóxico, com risco de reações adversas”, aponta Marco Stephan, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP).
Indústrias farmacêuticas que trabalham com a hidroxicloroquina e a cloroquina já se anteciparam. A Novartis anunciou a doação de 130 milhões de doses no mundo todo. Já a EMS apoiará um estudo (conduzido por diferentes instituições) com cerca de 500 pacientes brasileiros com Covid-19 em estado grave.
No estudo francês, a hidroxicloroquina foi mais eficaz quando combinada com a azitromicina, um antibiótico normalmente receitado para infecções de garganta e pneumonias bacterianas. Essa possibilidade também será testada no Brasil. Espera-se que os resultados estejam disponíveis em 60 dias — o que seria bem veloz para o ritmo científico.
Por enquanto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regula o setor no país, não recomenda o uso da cloroquina. Ela inclusive restringiu sua compra depois do remédio sumir de diversas farmácias, como mostra VEJA.
Antirretrovirais
Entre os compostos que a OMS irá estudar estão o ritonavir e lopinavir, que formam um dos coquetéis antirretrovirais usados para controlar o vírus da aids. Os primeiros resultados, contudo, não são lá muito animadores.
Pesquisadores de Wuhan (China), o epicentro da pandemia, administraram o coquetel em 199 indivíduos em estado grave. E não houve diferença entre o grupo que tomou o remédio e o que recebeu o tratamento padrão. Os achados foram publicados no último dia 15 de março, no The New England Journal of Medicine. Apesar disso, é provável que os antirretrovirais sigam sendo testados.
“O Sars-Cov-2 depende de certas enzimas para se multiplicar, e alguns medicamentos usados contra o HIV são inibidores enzimáticos, o que poderia dificultar a replicação do vírus no organismo”, comenta Stephan.
Interferon beta
A OMS também avaliará os antirretrovirais descritos acima combinados com o interferon beta, atualmente incluído no tratamento da hepatite C. “Ele ajuda a regular a inflamação do corpo, e suspeita-se que uma das razões para o agravamento dos quadros de Covid-19 seja justamente a resposta inflamatória exagerada do organismo”, explica Emery.
O composto demonstrou efeito positivo em estudos contra outro subtipo de coronavírus, o Sars-Cov, que esteve por trás da epidemia de Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers) em 2002. Mas os experimentos foram feitos em células isoladas no laboratório, de modo que ainda é muito cedo para extrapolar os achados a seres humanos.
Remdesivir
Assim como os medicamentos usados para o HIV, o remdesivir é um composto que atua tentando conter a replicação de determinados vírus. Só que é uma droga experimental, que ganha uma segunda chance de demonstrar sua eficácia. A primeira ocorreu em 2019, durante o surto de ebola no Congo, sem efeitos positivos.
Duas pessoas com quadros graves de Covid-19 receberam o remdesivir nos Estados Unidos e se recuperaram bem. Um deles foi o primeiro caso diagnosticado naquele país. Mas esses são números pra lá de incipientes.
Rigor científico versus rapidez em tempos de crise
Está aí uma equação difícil de resolver. Geralmente, para que um remédio seja oficialmente indicado contra uma doença, mesmo que já tenha eficácia comprovada para outros males, é preciso cumprir etapas científicas rígidas (e caras).
Isso inclui estudos com número significativo de pessoas, comparando o efeito da droga em questão com um placebo, sem que os voluntários saibam o que estão recebendo. Entretanto, em um cenário tão fora da curva como a pandemia de Covid-19, é possível que haja uma flexibilização nesse ritual.
Os especialistas lutam agora para definir o meio termo. “Concordo que, em tempos de epidemia, não é possível demandar testes clínicos tão rigorosos. Mas fazer um trabalho com resultados pouco confiáveis também não serve de muita coisa”, explica Natália Pasternak, bióloga da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência.
Na pesquisa SOLIDARITY, da OMS, os profissionais de saúde envolvidos devem obter consentimento do voluntário e inserir seus dados em uma plataforma, que automaticamente direciona de maneira randômica uma das drogas citadas para ele, de acordo com a disponibilidade local.
A partir daí, os médicos informarão dados como alta, óbito, duração da internação e outras medidas terapêuticas necessárias em cada paciente. A ideia é fazer tudo de maneira simples, porém criteriosa, para não sobrecarregar mais os já sobrecarregados profissionais de saúde na linha de frente do combate à doença.
“Trata-se de uma estratégia simplificada, mas ainda qualificada, para se obter o máximo de informação possível em um curto espaço de tempo”, destaca Emery.