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O revés das dietas sem glúten

Cortar a proteína de pães e massas virou tendência no mundo todo. Mas novos estudos mostram que essa moda pode cobrar seu preço lá na frente

Por André Biernath
Atualizado em 14 fev 2020, 18h25 - Publicado em 27 jul 2017, 11h30
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  • O remédio cerivastatina foi uma das medicações mais prescritas pelos cardiologistas no final dos anos 1990. Seu poder de baixar o colesterol e prevenir problemas cardíacos era indiscutível. Até que surgiram relatos de pessoas que tomaram esse tipo de estatina e tiveram rabdomiólise, uma destruição gravíssima dos músculos. Em pouco tempo, o comprimido foi banido do mercado e não se falou mais nele. Guardadas as devidas proporções, fenômeno similar começa a acontecer com a dieta sem glúten.

    Após celebridades anunciarem que parar de ingerir a proteína do trigo, da cevada e do centeio era a fórmula certeira para emagrecer, o assunto ganhou as ruas e as redes sociais – o número de adeptos do regime glúten-free triplicou de 2009 para cá, de acordo com uma pesquisa da Escola Médica Rutgers New Jersey, nos Estados Unidos. Porém, passados alguns anos dessa febre toda, começam a pintar evidências de que eliminar pães e bolos sem motivo aparente ou orientação médica não é lá uma boa ideia – pelo contrário, a restrição está vinculada ao maior risco de problemas de saúde sérios.

    A primeira prova do revés vem da americana Universidade Harvard. Foram analisadas informações de quase 200 mil indivíduos, acompanhados durante três décadas. Aqueles que consumiam pouco (ou nenhum) glúten por dia apresentavam um maior risco de desenvolver diabetes tipo 2.

    Outro artigo, assinado por experts da Universidade Colúmbia, também nos Estados Unidos, não encontrou relação entre a ingestão da proteína e o aumento nas taxas de infarto e AVC. Na contramão, o consumo moderado das fontes de glúten estava ligado a uma menor probabilidade de encarar esses males. “Falamos de alimentos ricos em grãos integrais, que sabidamente conferem proteção cardiovascular”, diz o gastroenterologista e pesquisador Andrew Chan.

    Mas de onde viria essa proteção? Ora, trigo, centeio e cevada carregam vitaminas e fibras, estas essenciais para manter o equilíbrio da microbiota, o conjunto de bactérias que vivem em nosso sistema digestivo. “Elas são alimento para esses micro-organismos e impedem a absorção excessiva de gorduras e açúcares”, explica a nutricionista Olga Amancio, presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição.

    Assim, a ausência desse tipo de alimento no cardápio bagunçaria a flora intestinal e criaria condições para diabete, colesterol alto e outras encrencas prosperarem. Apesar desses indícios, convém deixar claro que os dois estudos não permitem determinar ainda uma relação de causa e efeito. “Precisamos confirmar esses achados com outras pesquisas”, admite a médica Rosana Radominski, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.

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    Isso não significa que os produtos glúten-free vão se livrar de outras acusações. Uma das mais perturbadoras é a de que mercadorias sem o ingrediente são mais calóricas. A constatação veio do Instituto de Investigação Sanitária La Fe, na Espanha, que vasculhou 1 300 rótulos. A nutricionista Vanderli Marchiori, do Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª Região (SP/MS), conta que a falta da proteína afeta a maciez e a elasticidade das massas. “Daí, para compensar e acertar o ponto da receita, os fabricantes adicionam gordura, que às vezes até ultrapassa a quantidade diária recomendada”, alerta.

    Ok, mas como os famosos emagreciam, então? Isso só acontecia porque, ao excluir o glúten, faziam restrição severa de carboidratos, nossa principal fonte de calorias. O glúten em si, ao que parece, não tem nada a ver com a história.

    Dietas sem glúten devem ser proibidas?

    Não é bem assim. Há situações em que elas não são apenas indispensáveis, mas vitais para manter a saúde em dia. É o que ocorre nos indivíduos com doença celíaca, uma desordem autoimune deflagrada pelo consumo de pães, bolos e afins. Neles, a proteína desencadeia uma reação descompensada das células de defesa, que passam a agredir e destruir as vilosidades do intestino, estruturas responsáveis por absorver os nutrientes. “Em curto prazo, isso gera mal-estar, dor abdominal e gases. Em longo prazo, causa até atraso no crescimento das crianças e osteoporose”, descreve o gastroenterologista Ricardo Barbuti, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista.

    A condição, que geralmente dá as caras na infância, mas pode se manifestar em qualquer fase da vida, é detectada por meio de exames de sangue e biópsia. Ela atinge por volta de 1% da população mundial – número que não tem se elevado nos últimos anos. Como ainda não inventaram uma pílula para combater o quadro, o corte do glúten é total.

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    Para ter ideia, não dá pra usar nem a faca que outra pessoa utilizou para espalhar manteiga numa torrada. Uma mísera migalhinha já é o bastante para o início do revestrés na barriga. “Nesses casos, é preciso adaptar completamente a alimentação e apostar em substitutos do glúten, como a farinha de mandioca, o polvilho, a tapioca, o fubá, o amido de milho e a batata”, enumera a gastroenterologista pediátrica Vera Lucia Sdepanian, da Universidade Federal de São Paulo.

    Um segundo problema que exige o abandono das massas convencionais é a sensibilidade não celíaca. O dilema é que essa enfermidade foi descrita há cerca de sete anos e não existe muito consenso sobre suas características.

    Tudo começou quando os médicos observaram no consultório um aumento em queixas sobre incômodos gastrointestinais após a ingestão de trigo e companhia – acredita-se que até 15% das pessoas no globo tenham esses sintomas. Para complicar, faltam testes mais certeiros. “Nós sugerimos retirar o glúten, pelo menos temporariamente, para ver se acontece uma melhora”, prescreve a gastroenterologista Maria do Carmo Passos, da Universidade Federal de Minas Gerais. Todo o processo deve ser acompanhado por um especialista, vale destacar.

    A perspectiva é que apareçam novidades para contra-atacar as duas condições – até uma vacina terapêutica teve resultados promissores em estudos iniciais. A única coisa que não dá é abolir a proteína sem necessidade ou a recomendação do doutor. “Isso inclusive atrapalha o diagnóstico e protela o tratamento”, lamenta Maria do Carmo. Enquanto modismos vêm e vão, a ciência segue firme e cautelosa. Só assim podemos evitar que soluções ditas milagrosas se transformem em verdadeiras tragédias.

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    Quem é o glúten?

    Na natureza
    Trata-se de um conglomerado de proteínas que integram os grãos de cereais como o trigo, o centeio e a cevada.

    Na culinária
    O glúten forma redes que aprisionam o gás carbônico e permitem que o pão e o bolo cresçam e fiquem fofinhos.

    No corpo
    Em situações normais, ele é digerido regularmente. Na doença celíaca, provoca inflamação no intestino.

    Flagra veloz

    A empresa americana de tecnologia Nima desenvolveu um aparelho portátil capaz de rastrear partículas de glúten. Basta selecionar um pedacinho do alimento e colocá-lo dentro do dispositivo. Em menos de três minutos, ele dá o veredicto em um visor. O recurso, já disponível ao público nos Estados Unidos, é uma mão na roda para celíacos, que sempre ficam inseguros ao experimentar pratos diferentes na casa de amigos ou em restaurantes.

     

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