Em seu site pessoal, Karina Okajima Fukumitsu, de 51 anos, se apresenta como psicóloga, psicopedagoga e… suicidologista.
O termo, ainda pouco conhecido, já rendeu situações curiosas. Certa vez, ao dar palestra em uma universidade, um aluno perguntou: “É aqui o curso de suicídio da Karina?”. “Não sou especialista em suicídio”, se apressa em explicar. “Sou especialista em prevenção de suicídio”, corrige.
E, logo em seguida, ela acrescenta: “E em posvenção também”. Se prevenção é o conjunto de medidas que busca evitar um mal e abrange o estudo dos fatores de risco e de proteção, posvenção é o amparo às gerações futuras e ao ambiente social, ou seja, a pais, filhos e amigos que sofreram a partida de alguém que se mata.
“Suicidologia é a área da psicologia que estuda os processos autodestrutivos e sua prevenção”, define a expert. “Seu objetivo é cuidar dos enlutados por suicídio e ajudá-los a fazer a travessia da condição de sobreviventes à de seres viventes”, completa.
Karina começou a se interessar pelo assunto ainda criança, lá pelos 10 anos de idade. Ela perdeu a conta das vezes em que, ao lado da irmã, Cristina, dois anos mais velha, precisou chamar a ambulância para socorrer a mãe. Por incontáveis ocasiões, a matriarca da família, Yooko Okajima, teve que ser levada às pressas para o pronto-socorro mais próximo por tentativa de suicídio.
Só de internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) foram quase 20. Numa delas, Karina foi obrigada a ouvir de um dos enfermeiros de plantão: “Ah, Dona Yooko, a senhora de novo por aqui?”, perguntou, em tom de deboche.
Karina tinha 4 anos quando, no dia 1º de fevereiro de 1974, o irmão de sua mãe morreu no incêndio do Edifício Joelma, em São Paulo. Na tragédia, 187 pessoas perderam a vida e outras 300 ficaram feridas. Desde então, a vida de Dona Yooko virou pelo avesso.
Deprimida, passou a fazer uso de álcool e a não sair de casa. “Minha mãe me ensinou muitas coisas. Uma delas foi ressignificar o sofrimento e a transformar a dor em amor”, afirma a psicóloga.
Ao longo dos anos, Karina teve que enfrentar outras “partidas”: a de um sobrinho, afogado na piscina da chácara onde mora sua família; a de sua melhor amiga, em um acidente de carro a caminho da faculdade; e a da própria mãe, vítima de um problema do coração, em 2013.
Quando fazia o pós-doutorado, entre 2013 e 2017, Karina levou outro susto: o diagnóstico de uma inflamação cerebral autoimune, apelidada de “tsunami existencial”, que causava dor de cabeça, falta de ar e perda de movimentos, entre outros sintomas.
“Levei vários tombos da vida. Por diversas vezes, tive dúvida se conseguiria me levantar. Certa vez, cheguei a ter ideações suicidas. Você começa a achar que o suicídio é a solução que procura para algo que parece não ter solução. Nessas horas, lembrava da minha obaachan [“avó”, em japonês]: ‘Karina, tudo tem jeito, menos morte’. Essa frase me ajudou a ter forças e a acreditar que, apesar do sofrimento, eu conseguiria virar o jogo”, conta.
Hoje, Karina Fukumitsu é uma das maiores referências do país em prevenção de suicídio no Brasil.
Com doutorado e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), apresenta o podcast Se Tem Vida Tem Jeito, coordena uma pós-gradução em suicidologia na Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), presta atendimento a famílias, colégios e empresas e escreve livros sobre luto e suicídio — os mais recentes são Sobreviventes Enlutados Por Suicídio: Cuidados e Intervenções e Revés de Um Parto: Luto Materno, ambos pulicados pela Summus Editorial.
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Questão de saúde pública
Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que um suicídio deixa cicatrizes na vida de, no mínimo, cinco pessoas. Outro estudo, da National Action Alliance for Suicide Prevention, nos Estados Unidos, calcula um número 23 vezes maior: 115 pessoas são impactadas pelo suicídio de alguém.
Um dos colégios que Karina atendeu foi o Bandeirantes, em São Paulo. Em 2018, no intervalo de 15 dias, dois alunos do Ensino Médio, que não tiveram suas idades divulgadas tiraram a própria vida.
Numa dessas visitas, Karina foi procurada por um estudante que lhe contou que uma colega de turma estava postando fotos de automutilação em grupos privados.
Karina, então, procurou a família da garota e ligou o alerta vermelho. No dia seguinte, a aluna rabiscou a prova do colega. “Tomei bronca em casa por sua causa”, reclamou ela. “É melhor ter um amigo bravo do que um amigo morto”, consolou Karina.
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“A pergunta que eu mais ouço em meus cursos e palestras é: ‘Como agir com quem fala que quer se matar?’ Costumo responder: ‘Quem está longe julga; quem está perto compreende’. A primeira coisa a fazer é se aproximar, assumir uma escuta empática, sem dar conselhos ou fazer julgamentos”, orienta a psicóloga.
“No ambiente escolar, há sinais de alerta, como baixo rendimento nas aulas, isolamento social e mudança abrupta de comportamento, e tudo isso precisa ser observado. Assim como frases do tipo: ‘Quero sumir’, ‘Não aguento mais’ ou ‘Só morrendo mesmo’”, esmiúça.
Outras dicas da especialista: nunca deixar a pessoa sozinha, tirar de perto armas de fogo ou objetos cortantes e convencê-la a procurar ajuda médica.
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“Mamãe e papai, não se culpem. Amo vocês”
Desde 2014, o mês de setembro é dedicado à prevenção do suicídio. A origem do Setembro Amarelo está associada à morte de Michael “Mike” Emme (1977-1994). Mike tinha 17 anos quando comprou e restaurou, ele mesmo, um Mustang 68. Na hora de pintar o carro, escolheu sua cor favorita: o amarelo.
No dia 8 de setembro de 1994, porém, algo inesperado aconteceu: “Mamãe e papai, não se culpem. Amo vocês”, rabiscou em um pedaço de papel. No dia do enterro, seus pais, Dale e Darlene, distribuíram 500 cartões com os dizeres “Se precisar, peça ajuda!”, todos enfeitados com uma fita amarela, entre parentes e amigos. Naquele mesmo ano, fundaram uma associação, a Yellow Ribbon (“Fita Amarela”), em homenagem ao filho.
Em 2003, a OMS instituiu o 10 de setembro como o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio e, em 2015, o Centro de Valorização da Vida (CVV) criou o Setembro Amarelo.
Todos os anos, cerca de 1 milhão de pessoas cometem suicídio. Dessas, 12 mil no Brasil. “Precisamos falar sobre suicídio, sim. E sua prevenção não deve se restringir a um dia ou a um mês específicos. O problema não é falar. É como se fala. Muitas vezes, há sensacionalismo e espetacularização”, afirma Karina.
A psicóloga continua: “A própria OMS recomenda que, ao noticiar um episódio de suicídio, não se informe, por exemplo, detalhes sobre a maneira pela qual a pessoa se matou. A série 13 Reasons Why [da Netflix] causou polêmica tanto por exibir a cena do suicídio quanto por apontar culpados”.
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Solução permanente para problema temporário
Para entender o que leva alguém em sofrimento psíquico a tentar destruir a própria vida, a OMS descreve três características do comportamento suicida. A primeira delas é a ambivalência: a pessoa não quer morrer; quer é dar um fim ao seu sofrimento.
A segunda é a impulsividade. Impulsiva é toda pessoa que age (ou reage) sem refletir. Que obedece ao impulso do momento. “O suicídio é uma solução permanente para um problema temporário”, teorizou o suicidologista americano Edwin Shneidman (1918-2009).
E a terceira, a rigidez de pensamento. Rígido é algo pouco flexível ou maleável. No comportamento suicida, não há meio termo: é tudo “agora ou nunca”, “vida ou morte”, “8 ou 80”…
No Brasil, além da impulsividade, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) acrescenta três “Ds” às principais causas de suicídio: desesperança, desespero e desamparo.
Até pouco tempo, a cartilha Suicídio: Informando para Prevenir, elaborada pelo Ministério da Saúde, trazia um quarto “D”, de depressão. No entanto, ainda que seja um dos principais fatores de risco, a depressão não é o único transtorno psiquiátrico por trás do problema. Bipolaridade, esquizofrenia e uso de drogas, por exemplo, também exigem atenção.
“Dizem por aí que 90% dos casos de suicídio são evitáveis. É uma das frases mais irresponsáveis que existe. Quando ouvi da primeira vez, fiquei indignada. Muitos enlutados já vieram me perguntar: ‘Karina, o que eu fiz de errado? Por que não consegui evitar o suicídio do meu filho ou da minha fila?’. É o tipo de frase que traz sentimento de culpa”, relata a psicóloga.
“O que a OMS quis dizer nesse sentido, e foi mal interpretada, é que a maior parte dos casos de suicídio está relacionada a transtornos psiquiátricos. Como suicidologista, não me atrevo a querer ser uma salva-vidas. Seria onipotência minha. Sou, na melhor das hipóteses, uma guarda-vidas”, conclui.