Meu nome é Fabiana, tenho hoje 50 anos, sou mastologista há mais de 25 e trato diariamente pessoas com câncer de mama, na sua grande maioria mulheres.
Aos 45, já liderando o Centro de Referência da Mama do A.C.Camargo, recebi o diagnóstico de câncer de mama. “Calma lá, doutora, como assim?”, você pode indagar. Sim, isso mesmo: sou médica, e já fui paciente.
Durante um bom tempo, não entendia muito bem o motivo desse questionamento. Mesmo convidada a falar abertamente sobre o tema neste espaço, ficava me perguntando quanto essa informação poderia ser útil ou interessante à leitora e ao leitor.
O fato é que, durante mais de um ano, só pessoas próximas sabiam do meu diagnóstico — a família, amigos e colegas com os quais fiz exames e tratamentos.
Muita gente foge de conversas que podem causar algum tipo de desconforto, tanto que boa parte das minhas pacientes se queixa comigo que o câncer traz isolamento social. É óbvio que não é igual para todas, mas a maioria relata que amigos se afastam e a relação no ambiente de trabalho muda — como se virássemos “café com leite”.
Talvez por ouvir diariamente tantas mulheres com histórias semelhantes, pensei que eu mesma, passando pela mesma experiência, não teria nada a agregar para os outros. No entanto, como viver à sombra de algo que foi tão significativo e marcante em sua vida, guardando-o só para si?
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A vida após o diagnóstico
Como todas as outras mulheres que recebem esse mesmo diagnóstico, minha história começa em um dia normal. Afinal, coisas boas e ruins acontecem a todos, sem aviso prévio.
Eu estava com meus exames atrasados e fui alertada por minha ginecologista — como muitas das minhas próprias pacientes, tudo era prioridade na vida, exceto o autocuidado.
Cuidados com a casa, os filhos, o cachorro, o gato e o papagaio… Com frequência, nos esquecemos de nos incluir na nossa agenda. Os resultados da biópsia na mama chegaram em uma segunda-feira. Quando abri a porta do consultório para liberar a paciente que estava comigo na sala, na recepção estavam duas pessoas, a paciente seguinte e uma amiga também mastologista.
E assim foi: a pessoa que seria a minha médica estava sentada do outro lado da mesa, de onde minha paciente anterior tinha acabado de sair, e eu, a médica e dona do consultório, acabava de virar paciente.
A vida segue, apesar do nó na garganta.
O pensamento fica desconexo, minha família ainda não sabia o que estava acontecendo. Tinha uma paciente à minha espera, aulas a dar nas semanas seguintes, cirurgias agendadas… Tudo por causa de uma palavra com seis letrinhas. Eu era uma das mais de 73 mil mulheres e pelo menos 730 homens que anualmente recebem o diagnóstico do câncer de mama no Brasil.
Nessas horas, precisamos fazer uma pausa…
Tive inúmeros medos: perder a capacidade de manter meu trabalho de cirurgiã, encarar alguma complicação da doença ou do tratamento, porque, nós, profissionais, sempre ouvimos que “com médico tudo complica”. Odeio esse mito, e reforço a minhas pacientes que ele não tem cabimento, mas sabe como é… Como dizem os espanhóis: No creo en brujas, pero que las hay, las hay.
A insegurança existe, claro. Mas a questão é: temos escolhas? Precisei acreditar, entender, aceitar, participar, parar para respirar e seguir. Como especialista, uma das coisas mais difíceis durante o processo é conhecer as exceções à regra, os casos raros e as notas de rodapé dos livros técnicos.
Cheguei a ter tantos questionamentos e divagações que, num determinado momento, passei a concordar com a frase “A ignorância é uma bênção!” Ao que uma das amigas que cuidavam de mim rebateu: “Pode parar! Repita comigo: o conhecimento é uma bênção, porque gera escolhas e oportunidades”.
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Abraçar uma causa
No segundo Outubro Rosa após meu diagnóstico, em um evento para o qual fui convidada e onde ninguém sabia da minha história, me libertei. Nele havia pacientes com uma pulseira rosa-claro, as que tinham câncer de mama inicial, e as com pulseira rosa-escuro, com câncer de mama em estágio avançado.
Antes de subir ao palco, me senti exatamente igual a todas aquelas mulheres sentadas para me ouvir falar.
Percebi que tudo o que havia acontecido comigo também tinha acontecido a elas. O câncer de cada uma delas podia ser de tamanhos diferentes, subtipos diferentes, com tratamentos diferentes, mas ali o que nos unia não era a profissão, a classe social, a cor da pele ou o conhecimento, mas a própria doença.
Me enchi de força, me inspirei naquelas pessoas que tiveram a coragem de compartilhar suas histórias e, por fim, pedi a minha pulseira. Subi ao palco sentindo que, a partir daquele momento, eu deveria ser a voz de todas as profissionais, de todas as mães, de todas as filhas, de todas as classes, de todas as pacientes que tiveram o mesmo diagnóstico que eu tive.
Ser médica sempre foi minha paixão e missão, e nunca me senti excluída da possibilidade de ter câncer de mama. A doença não é culpa de ninguém — tem a ver com genes, hábitos e envelhecimento. Mas não me representa, não muda quem sou.
Sei que, para alguns homens e mulheres, o diagnóstico enseja reflexões e mudanças de valores. Não foi assim para mim — nem isso é obrigatório.
O câncer mudou minha vida, mas não exatamente o câncer que tive, mas todo aquele que ajudei a tratar. Cada paciente foi um aprendizado — daí minha gratidão a cada um deles. Câncer não é castigo, tampouco destino.
Ser médica foi uma escolha, ser paciente simplesmente aconteceu, e, como dizia meu pai, faz parte da vida! Você pode ser médica, professora, dona de casa, bancária, faxineira, advogada, arquiteta, tanto faz, quando adoece, vira paciente.
Por isso a gente precisa se colocar na própria agenda. Precisa estar bem para cuidar de si e de quem ama. Não importa a posição que você ocupa, a saúde é seu bem mais precioso. Sim, meu nome é Fabiana, sou médica, tenho 50 anos e já fui paciente também.
Agora fala aqui para mim: você está com seus exames em dia?
* Fabiana Makdissi é mastologista e líder do Centro de Referência da Mama do A.C.Camargo