Câncer infantil: “Desigualdades diminuem chances de cura e sobrevida”
A oncologista pediátrica Denise Bousfield analisa avanços e desafios do diagnóstico ao tratamento de tumores malignos em crianças e adolescentes
Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), quase 8 mil casos de câncer são detectados em crianças e adolescentes de 0 a 19 anos anualmente — o que equivale a 3% dos diagnósticos malignos no Brasil. É um quadro raro no contexto geral, mas que requer atenção e esforços redobrados diante da gravidade e complexidade da condição.
“É importante reduzir as desigualdades no acesso ao diagnóstico e na qualidade do tratamento e, assim, melhorar os resultados terapêuticos para todas as crianças”, avalia Denise Bousfield da Silva, presidente do Departamento de Oncologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Com características diversas dos tumores que afetam adultos, os cânceres infantojuvenis trazem desafios diferentes em relação ao diagnóstico precoce e tratamento. À VEJA SAÚDE, Bousfield explica o que se sabe sobre o desenvolvimento da condição e traça um panorama dela no Brasil. Confira:
VEJA SAÚDE: Quais são as principais particularidades dos cânceres infantojuvenis, em comparação com os que surgem nos adultos?
Denise Bousfield da Silva: Os cânceres em crianças e adolescentes têm características próprias em relação ao tipo de célula envolvida e ao comportamento clínico. Tendem a apresentar menores períodos de latência [período entre a exposição a fatores carcinogênicos e o diagnóstico], crescem quase sempre rapidamente e são geralmente invasivos — mas respondem melhor à quimioterapia.
A maioria dos cânceres infantis não são determinados por alterações hereditárias no DNA, ou seja, não são causados por mutações genéticas herdadas do pai ou da mãe. Eles são resultantes de mudanças no DNA da criança que acontecem no início de sua vida, às vezes antes mesmo do nascimento. Essas mutações ocorrem nesses primeiros anos e estão presentes apenas nas células malignas [cancerosas].
Não há evidências científicas, até o momento, que mostrem que fatores de risco ambientais — isto é, relacionados ao estilo de vida do jovem — tenham forte associação com o câncer infantojuvenil.
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Quais cânceres são mais comuns nos mais jovens?
Diferentemente do adulto, o câncer em crianças geralmente compromete as células do sistema sanguíneo e os tecidos de sustentação, sendo as leucemias, os tumores do sistema nervoso central e os linfomas os mais frequentes.
Nos adolescentes, os cânceres mais comuns são linfomas, principalmente linfoma Hodgkin (representa cerca de 20% dos tumores malignos nesta faixa etária), leucemias, tumores cerebrais, osteossarcoma, carcinoma de tireoide e tumores testiculares.
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Cerca de um terço dos cânceres na infância e adolescência correspondem a casos de leucemia. Como essa doença pode se manifestar?
As leucemias representam um grupo heterogêneo de doenças que surgem por uma desordem na formação das células do sangue e comprometem, primariamente, a medula óssea.
Na maioria dos casos, esta anormalidade genética é adquirida ao longo da vida, e somente cerca de 5% dos casos está associada a síndromes genéticas hereditárias.
As leucemias mais comuns na infância são as agudas, sendo a leucemia linfoide a mais frequente (de 75 a 80%). A taxa de sobrevida para leucemia linfoide aguda [LLA], com os atuais protocolos de tratamento, está em torno de 80%, mas ainda existem desafios significantes para pacientes com prognósticos adversos.
As leucemias mieloides agudas [LMA] representam de 15 a 20% dos casos, e as mieloides crônicas [LMC] são incomuns, variando de 2 a 5% na infância e adolescência.
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Atualmente, quais são, na sua análise, os principais desafios no diagnóstico e tratamento oncológico pediátrico?
Quando o câncer é detectado em estágios iniciais, há maior probabilidade de cura e menor necessidade de tratamentos agressivos, o que reduz bastante o risco de complicações.
Havendo suspeita de câncer, é importante que os jovens sejam prontamente encaminhados para centros de referência em oncologia pediátrica. Para que haja celeridade, é necessário por em prática uma série de ações na atenção básica, focadas em seguimento, vigilância e promoção da saúde da criança e do adolescente.
Isso inclui estratégias de divulgação de informações para profissionais e para população, abordando o diagnóstico precoce; programas de educação continuada para os profissionais e aumento da comunicação entre os serviços primários e especializados.
Outro aspecto importante a ser considerado é a redução das desigualdades no acesso ao diagnóstico e na qualidade do tratamento, para melhorar os resultados terapêuticos para todas as crianças. As desigualdades na área da saúde diminuem as chances de cura e de sobrevida de milhares de crianças e adolescentes que não conseguem fazer exames ou ter a atenção de especialistas.
Os desafios ainda incluem a melhora do entendimento sobre a interação entre o sistema imune e o câncer, que permite a criação de novas imunoterapias efetivas contra as doenças, especialmente naqueles pacientes com doença residual mínima e com alto risco de recorrência.
Também deve ser considerado o detalhamento do perfil genético de cada criança com câncer. Isso não só melhoraria o manejo clínico, como também a validação de ensaios promissores, com a introdução da nova era da medicina molecular individualizada.
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Além do acompanhamento de um oncopediatra, quais outros profissionais são necessários ao tratamento de crianças e adolescentes com câncer?
Considerando o impacto multidimensional do câncer, é fundamental a participação de uma equipe multidisciplinar desde o início do tratamento. A cura da doença envolve não somente a recuperação biológica, mas também a qualidade de vida do paciente e de sua família, e sua reintegração social.
É importante enfatizar que o tratamento do câncer compreende diversas modalidades terapêuticas e deve ser coordenado pelo oncologista pediátrico e realizado por diversos médicos especialistas. Entre outros, cito aqui cardiologista, nefrologista, hematologista, infectologista, radiologista, neurocirurgião, radioterapeuta e cirurgião oncológico.
A equipe multidisciplinar também inclui farmacêutico, serviço social, psicólogo, enfermagem, especialistas em sexualidade e esterilidade para os adolescentes, nutricionista, terapia ocupacional, dentista, fonoaudiólogo, fisioterapeuta e outros profissionais, de acordo com a necessidade de cada um.
A taxa de sobrevida por câncer infantojuvenil no Brasil está estagnada em 65%. O que é preciso ser feito para avançar no índice de cura?
As tendências nas taxas de mortalidade dependem de mudanças na incidência e na sobrevida, que estão vinculadas à capacidade do sistema de saúde no manejo do câncer, incluindo o diagnóstico precoce e o acesso ao tratamento eficaz.
As mortes evitáveis por câncer infantil em países de baixa e média renda ocorrem como resultado de subdiagnóstico, diagnósticos tardios ou incorretos, dificuldades de acesso a cuidados de saúde, abandono de tratamento, morte por toxicidade e maiores taxas de recorrência da doença.
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Portanto, é importante reduzir as desigualdades no acesso ao diagnóstico e na qualidade do tratamento e, assim, melhorar os resultados terapêuticos para todas as crianças.
Outro desafio importante para o incremento na sobrevida é realizar um tratamento individualizado e de acordo com o estadiamento clínico (extensão) da doença através da medicina de precisão e da produção de terapias-alvo.
É possível também implementar desde a juventude hábitos saudáveis, capazes de prevenir o câncer na fase adulta.
Entre os adultos, ao menos um quarto dos casos de câncer podem ser evitados eliminando ou minimizando a exposição a fatores de risco [tabagismo, alcoolismo, certas infecções virais etc]. Por isso, as estratégias de prevenção devem se concentrar na modificação de estilos de vida que promovem o câncer.
Levando em consideração que a infância e a adolescência são períodos críticos na formação de hábitos e no desenvolvimento de órgãos ou tecidos, é fundamental estimular, desde cedo, a prática regular de exercícios físicos, a alimentação adequada, a proteção solar e a vacinação contra agentes infecciosos [hepatite B e contra papilomavírus humano (HPV)].