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Vírus zika e microcefalia: “Ciência e assistência precisam andar juntas”

A obstetra Adriana Melo, primeira cientista a relacionar esse vírus com a microcefalia, avalia os desafios atuais — das vacinas ao cuidado com as crianças

Por Larissa Beani
Atualizado em 12 dez 2023, 18h32 - Publicado em 12 dez 2023, 16h30
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  • Desde 2015, a obstetra paraibana Adriana Suely de Oliveira Melo trava uma luta contra um inimigo microscópico: o vírus zika.

    A médica foi responsável por liderar o primeiro estudo do mundo a revelar que o agente, caso contraído durante a gestação (especialmente no primeiro trimestre), pode provocar microcefalia em fetos.

    Publicada no The Lancet Infectious Diseases em 2016, a pesquisa foi essencial para reforçar a importância da prevenção entre gestantes e também chamar a atenção para a necessidade de tratamento precoce das crianças nascidas com a condição.

    + Leia também: Que zika é essa? Uma história que não pode ser esquecida

    Hoje na presidência do Instituto Paraibano de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto (Ipesq), Melo coordena equipes que promovem o desenvolvimento desses pacientes, dando suporte às mães nos desafios diários das sequelas do zika.

    “No início, não haviam relatos de como tratar as crianças e de como orientar as mães sobre o assunto, pois eles eram os primeiros casos documentados”, explica a obstetra, que está à frente de um projeto de financiamento do tratamento desses casos.

    À VEJA SAÚDE, Melo avalia quais obstáculos ainda precisam ser vencidos na luta contra essa arbovirose e quais iniciativas têm ajudado crianças com microcefalia a terem maior qualidade de vida.

    Oito anos após a descoberta, o que ainda precisa ser feito em termos de prevenção e tratamento?

    Atualmente, não temos uma vacina contra o zika. Há imunizantes sendo desenvolvidos por várias instituições mundo afora, mas nenhum chegou a ser aprovado ainda, porque não há investimento suficiente para isso.

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    É uma doença que não atinge países desenvolvidos, e por isso acaba sendo negligenciada. Mas até mesmo no Brasil, que registra milhares de casos por ano, o investimento em pesquisa é baixo — e centrado no eixo Rio-São Paulo.

    + Leia também: É para ontem: precisamos ampliar a pesquisa clínica no Brasil

    O Nordeste tem muito a contribuir ao tema e a população da região seria muito beneficiada.

    Também falta uma maior interação entre as vivências do consultório e do laboratório. Os achados científicos precisam ser traduzidos nas crianças, em melhores prognósticos e tratamentos. Ciência e assistência precisam andar juntas.

    Com as mudanças climáticas, há um aumento do risco de surtos de arboviroses, inclusive o zika. O que deve ser feito para evitá-los?

    É preciso fazer o controle do mosquito, mesmo que seja difícil, e ter uma boa vigilância epidemiológica e laboratorial — que não temos.

    Garantir o acesso ao exame PCR para o rápido diagnóstico também é imprescindível, principalmente em localidades isoladas e desassistidas.

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    É preciso que a orientação chegue a toda a população, e que mulheres grávidas saibam se proteger, fazer uso de repelente, principalmente no primeiro trimestre de gestação.

    Há países que podem servir de exemplo ao combate?

    É difícil. O vírus pode ser encontrado na América Latina e Caribe, na Ásia [especialmente no Sudeste Asiático], em ilhas da Oceania e na África, de onde é originário. 

    Quando o zika estava mais restrito ao território africano, ele provocava aborto. O vírus que chegou ao Brasil é uma mutação menos letal aos fetos, que passaram a correr maior risco de microcefalia.

    + Leia também: Entrevista: ‘Destruição na Amazônia ameaça a saúde de todos’

    Por termos muitos mosquitos transmissores por aqui, o vírus facilmente se replicou no país e se disseminou para outras regiões, inclusive regressando à África.

    Ainda que tenhamos o que melhorar, somos o país com mais casos documentados. Muitas nações não têm acompanhado devidamente o avanço do vírus, inclusive de casos de microcefalia em bebês pela infecção.

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    Em 2019, fomos à Angola conhecer e tratar uma criança com a condição, cujo Ministério da Saúde local não tinha conhecimento. Hoje, acompanhamos virtualmente dez crianças por lá.

    Como é feito hoje o tratamento de crianças atingidas pelo zika?

    O ideal é que você habilite funções, e não reabilite. Isso quer dizer que elas deveriam ser acompanhadas por profissionais de saúde desde o nascimento para desenvolver habilidades como as de suportar o pescoço, manter a postura, caminhar, deglutir

    Nem todo o suporte, que deveria ser diário, é suprido pelo SUS [Sistema Único de Saúde], então há a barreira econômica de arcar com custos dos cuidados necessários, que incluem fisioterapia e fonoaudiologia, por exemplo.

    Esse trabalho de estimulação deve ser contínuo, porque as crianças podem perder as habilidades adquiridas caso não pratiquem. Durante a pandemia, vimos muitas regredirem.

    A gente precisa repensar as políticas públicas para crianças com deficiência e garantir que elas tenham uma maior qualidade de vida.

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    + Leia também: Estudo refuta suspeita de que dengue eleva risco de microcefalia por zika

    Em novembro, você esteve em Curitiba (PR) para palestrar sobre felicidade e pertencimento no Congresso da Felicidade. Como esses tópicos se relacionam com a sua pesquisa?

    A sensação de pertencimento e acolhimento é essencial para o bem-estar das famílias que convivem com as sequelas do zika.

    No início, não haviam relatos de como tratar as crianças e de como orientar as mães sobre o assunto, porque eles eram os primeiros casos documentados. Desde o início, eu percebi que precisava criar um ambiente de acolhimento, um centro de atenção a essas crianças. 

    As primeiras propostas não foram encampadas pelos governos, mas, em 2017, passamos a ajudar essas famílias por meio da Fraternidade Sem Fronteiras, uma ONG [organização não governamental] que nos permite conseguir doações e apadrinhamentos.

    As pessoas podem apadrinhar uma criança com doações a partir de R$ 25.  É o que mantém a maioria dos nossos tratamentos. A partir desse amparo, as mães começaram a se sentir mais felizes e acolhidas. 

    Se uma criança adoece, nossa enfermeira acompanha para ver se ela está precisando de alguma coisa. Se não tem vaga na UTI, vamos para a mídia cobrar. Damos vários tipos de suporte e isso tranquiliza as mães.

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    Em quase uma década dedicada à causa, como você avalia a situação atual do combate ao vírus e suas sequelas?

    As minhas maiores dores são a área da pesquisa, que não recebe o devido investimento, e ver que pouco mudou. 

    Por um lado, esses casos foram essenciais para firmar o uso de repelente como um cuidado essencial na gravidez. Por outro, o combate aos mosquitos permanece um desafio.

    Um dia, fui ao velório de uma das nossas crianças e, quando deu umas quatro horas da tarde, tinha tanto mosquito sobre a gente que eu disse: “Meu Deus, nada mudou”. Essas pessoas continuam sendo vítimas, seja do zika ou de outras doenças negligenciadas. Isso me dói muito.

    *A repórter viajou a Curitiba a convite da organização do Congresso Internacional de Felicidade.

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