“Infelizmente, o tratamento do autismo virou um grande negócio”
Psiquiatra Guilherme Polanczyk, um dos principais pesquisadores do TEA no Brasil, responde a 10 perguntas sobre o diagnóstico e o tratamento do transtorno

Abril é o mês de conscientização sobre o transtorno do espectro autista (TEA), uma condição que está sendo constantemente revisitada pela ciência.
Hoje, o conceito de autismo mudou, se ampliou, e mais gente sabe sobre ele. Assim, o número de diagnósticos aumentou. Só que, embora as pesquisas avancem, os tratamentos ainda não são capazes de curar o transtorno e, em muitos casos, não aliviam os desafios enfrentados pelas famílias.
Com tamanha popularidade, e tantas lacunas no conhecimento, cresce a desinformação online sobre o assunto e as ofertas por soluções milagrosas baseadas em pseudociências.
Para esclarecer alguns mitos e encerrar o Abril Azul, conversamos com o psiquiatra Guilherme Polanczyk, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Confira a seguir:
VEJA SAÚDE: Os números de diagnóstico de autismo têm mesmo aumentado?
Guilherme V. Polanczyk: Há um aumento progressivo das taxas de diagnósticos há pelo menos duas décadas. E há muitas explicações para isso: mais conhecimento, mais recursos, maior preocupação com a saúde mental e mais acesso a serviços.
Além disso, houve uma expansão do conceito do autismo. Ou seja, pessoas que antes não seriam diagnosticadas, principalmente com sintomas mais sutis, estão sendo. Agora, se o número de pessoas com autismo aumentou, é difícil dizer, não temos essa informação. Alguns estudos sugerem que sim, outros não mostram isso, e todos têm muitas limitações metodológicas.
Dá para falar em “epidemia” de autismo?
Não. Se falarmos em epidemia, seria uma epidemia de diagnósticos. Realmente as taxas aumentaram, mas temos que considerar que, no passado, pouquíssimas pessoas eram reconhecidas com autismo ou outros transtornos relacionados e não recebiam tratamento. A maioria da população ainda não tem acesso a serviços de saúde mental.
No passado não tão distante, as crianças com neurodesenvolvimento atípico eram colocadas à margem da sociedade, e agora esse grupo é reconhecido, estão nas escolas, então tem-se impressão de “epidemia”.
Por outro lado, também há a questão dos diagnósticos equivocados, porque outros transtornos estão sendo diagnosticados como espectro autista, seja por falta de conhecimento profissional, ou porque familias fazem pressão pelo diagnóstico, enquanto outras correm dele. Enfim, há todo um debate sobre o assunto.
Leia também: Autismo: “Vejo mais diagnósticos equivocados do que nunca”
Um bebê se torna autista ou nasce autista? Em que momento o transtorno se desenvolve?
Este é um dos transtornos em que a genética mais importa, apesar de também haver alguma influência ambiental, possivelmente fatores durante a gestação, como nutricionais, e questões relacionadas ao parto.
Estudos mostram que os cérebros das crianças que mais tarde serão diagnosticadas já é diferente durante o período pré-natal.
O que entendemos hoje é que a criança já nasce com potencial para desenvolver o autismo. Ele não é causado por vacinas, situações de estresse, problemas no relacionamento, telas, nada disso, mas sim por riscos genéticos que influenciam o desenvolvimento do cérebro em um estágio muito inicial, ainda na barriga da mãe.
Falando nisso, há muitas alegações sobre o papel de toxinas, microplásticos e outros compostos químicos no desenvolvimento do TEA. O que sabemos sobre isso?
O que sabemos é que há casos muito específicos que podem estar relacionados a esses fatores, mas, na grande maioria das vezes, essas influências ou não existem ou têm uma magnitude muito pequena.
Os fatores genéticos são os mais relevantes, e eles muitas vezes não são específicos pro autismo, podem ser genes relacionados a outros transtornos, como TDAH.
Além disso, muitas alterações genéticas não são herdadas de pai e mãe, mas acontecem espontaneamente na primeira divisão celular.
Os Estados Unidos afirmaram que pretendem detectar “as verdadeiras causas” do autismo até setembro. Como você enxerga esse movimento?
Os EUA têm uma relevância histórica no estudo sobre o autismo. Só que muitos desses cientistas agora foram dispensados ou ficaram sem financiamento. A linha de pesquisas do National Institutes of Health vem sendo desmontada. O que vemos, na verdade, é que o governo não está lendo a ciência atual.
Pensar que em poucos meses encontrarão uma causa para o autismo é voltar pelo menos 50 anos no tempo e ignorar todo o desenvolvimento científico feito durante esse período. Naquela época, se pensava que havia um gene, ou uma causa para transtornos mentais.
Depois de décadas de estudos sérios e rigorosos, estamos chegando mais perto das origens. E sabemos que não existe uma causa, assim como não há “o autismo”, mas sim “os autismos”, porque, com tantas possíveis alterações genéticas, o autismo se manifesta de diferentes formas.
É triste e um retrocesso o que ocorre nos Estados Unidos.
Qual é o padrão-ouro do tratamento hoje?
Hoje o tratamento é voltado a desenvolver as habilidades das crianças, com psicoterapias principalmente de abordagem comportamental. Essas são as com mais evidência de eficácia. Terapias cognitivas, aquelas voltadas para a comunicação, e aquelas que incluem os pais no processo, são muito importantes.
E elas serão mais ou menos intensivas de acordo com as dificuldades de cada criança e suas lacunas comportamentais e desenvolvimentais.
E alimentação da criança? Faz diferença excluir o glúten, por exemplo?
Se a criança tem uma alergia a glúten, faz toda a diferença. Do contrário, não.
Existem muitos estudos mostrando que a microbiota tem um papel no desenvolvimento do cérebro, inclusive do autismo, mas a gente não sabe como isso se dá exatamente e, portanto, isso não muda nada no tratamento.
Tampouco há evidências de de que um determinado probiótico ou suplemento terá efeito benéfico. O que é fundamental é uma nutrição adequada durante a gestação, além da suplementação de ácido fólico e ferro para a mãe.
Dito isso, a gente sabe que corantes alimentícios e açúcar aumentam a agitação. Ou seja, a alimentação tem uma influência sobre o comportamento, mas não sobre o prejuízo central relacionado ao autismo.
E os tais protocolos de “desparasitação”? Fazem algum sentido?
Isso não faz nenhum sentido. É um absurdo porque os pais, muitas vezes sem ter acesso a centros de saúde especializados, gastam recursos, tempo e esperanças com algo que inclusive pode implicar em riscos sérios para a saúde.
Infelizmente, o tratamento do autismo virou um grande negócio, com promessas danosas para as crianças e danosas para as famílias, que desperdiçam dinheiro e tempo nisso, enquanto deveriam estar focando em tratamentos eficazes.
Você vê um aumento da desinformação online sobre o assunto?
Sem dúvidas. Nas redes sociais, há um número enorme e que aumenta a cada dia de pseudoespecialistas na área, pessoas dando conselhos, falando a respeito, então, com isso, a desinformação aumenta.
Os “pseudoespecialistas” querem ganhar espaço e notoriedade, as famílias querem um tratamento milagroso, que possa resolver algo crônico, para o qual não existe cura, e há maus profissionais oferecendo isso.
Esse é um grupo muito vulnerável à desinformação. Por quê? E como fortalecer famílias para blindá-las disso?
A sociedade precisa de fontes confiáveis de informação, e também deve haver mais regulamentação, tanto do ponto de vista de quem são os profissionais que podem tratar o autismo e como deve ser feito esse tratamento.
Mas as familias sempre serao vulneráveis, porque é uma condição crônica, que gera sofrimento enorme, e a busca por algo que possa melhorar significativamente os sintomas ou mesmo curar o autismo é legítima.
E nós, do ponto de vista cientifico, sabemos muito sobre causas, mas esse conhecimento ainda não gera um resultado prático aplicável, os tratamentos melhoram, mas muitas vezes as dificuldades permanecem.
A busca é legítima, mas não temos respostas definitivas. O que é certo é que as famílias precisam seguir buscando, amparadas pela ciência, e nós, cientistas, temos que continuar buscando responder a essas demandas.