Em um cenário repleto de complexidades sociais, culturais e individuais, as meninas enfrentam desafios significativos que impactam profundamente seu bem-estar psicológico. E a interseccionalidade da saúde mental pode nos ajudar a compreender esse fenômeno. Estamos falando aqui de dois recortes importantes: a faixa etária e o gênero – ambos prioridade das ações de advocacy do Instituto Cactus.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que cerca de 50% das condições de saúde mental se iniciam até os 14 anos – 75% surgem até os 24 anos de idade. A adolescência é um período marcado por intensas transformações biológicas, psicológicas e sociais e pode ser considerada uma fase de maior vulnerabilidade para questões de saúde mental.
Trabalhar com esse público sob a perspectiva da promoção da saúde é uma forma de não apenas buscar a diminuição do sofrimento das pessoas dessa faixa etária, mas também ter uma geração futura de adultos próximos de atingir seu pleno potencial. Reconhecendo essa necessidade, o Instituto Cactus lançou uma cartilha com 10 recomendações de políticas públicas para se promover saúde mental para crianças e adolescentes dentro das escolas.
O recorte de gênero, como um fenômeno social, também é uma dimensão extremamente relevante para esse debate. A OMS considera a existência de diferenças no poder e no controle sobre os determinantes socioeconômicos entre mulheres e homens.
+Leia também: Saúde mental de mulheres: o que temos para comemorar?
Como resultado, os problemas relacionados à saúde mental tendem a afetar cada gênero de maneira diferente. São diversas as evidências que demonstram uma maior prevalência de depressão e transtornos de ansiedade em mulheres. Somando a isso, elas são expostas com maior frequência a diversos tipos de violência, o que traz riscos para sua saúde mental.
Esse cenário explica em parte porque as mulheres são prioridade para o Instituto Cactus. Além de serem catalisadoras de transformação social, elas ocupam a maior parte das posições na educação e na saúde e, muitas vezes, assumem o papel de provedoras nas famílias monoparentais, tão comum no Brasil principalmente em faixas etárias mais baixas.
Para aprofundar o tema, o Instituto Cactus desenvolveu uma cartilha contendo 10 recomendações de políticas públicas para promover a saúde mental de meninas e mulheres.
Os aspectos trazidos aqui denotam os desafios e a importância de termos faixa etária e gênero como norteadores das políticas e ações de prevenção de doenças e promoção de saúde. Ao olharmos para a intersecção destas dimensões, chegamos a um grupo de pessoas ainda mais invisibilizado e que demanda maior cuidado e atenção: as meninas.
Elas são expostas a fatores de risco específicos, para além daqueles associados à adolescência e ao gênero, quando olhados de maneira isolada. Apesar de não haver uma resposta simples para a crescente queixa de meninas sobre sua saúde mental, um levantamento da Mental Health Foundation nos ajuda a compreender esse contexto.
De acordo com a fundação, existe uma forte associação entre violência doméstica e transtornos mentais, sendo as meninas um dos grupos mais afetados. Também existem estudos que apontam para um impacto diferenciado das redes sociais na saúde mental de meninas adolescentes, especialmente relacionados a problemas com autoestima, insatisfação com o corpo e bullying.
Além de apontar para os efeitos econômicos e sociais da histórica negligência do público, a fundação sinaliza que o acesso e, consequentemente, o efeito das ações de prevenção de doenças relacionadas à saúde mental tende a ser diferente para meninas – como o fato delas relatarem praticar menos esportes e dormir menos do que os meninos.
Em levantamento feito até junho de 2023 para a produção da cartilha de saúde mental de meninas e mulheres, observamos que, dos quase 450 projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que tratam de saúde mental, nenhum é específico para as meninas.
Precisamos endereçar os fatores emergenciais, como a adaptação das políticas de combate à violência de gênero para esse público, a expansão das campanhas de conscientização sobre gravidez na adolescência e a promoção de um ambiente digital mais responsável. Mas precisamos de mais.
Nós devemos endereçar questões estruturais. Começar a gerar boletins epidemiológicos sobre saúde mental de meninas, promover uma lente transversal em todas as políticas de gênero, infância e adolescência que incorporem suas especificidades, empoderar jovens lideranças femininas para ocuparem as posições que desejarem na sociedade e, por fim, aproximá-las dos espaços de tomada de decisão.
Somente assim teremos iniciado o processo de tirar essas meninas da invisibilidade.
*Bruno Ziller é coordenador de projetos do Instituto Cactus, mestre em Política Pública pela Hertie School (Alemanha), especialista em Ciência Política pela FESPSP e bacharel em Relações Internacionais pela ESPM. Maria Fernanda Resende Quartiero é fundadora e diretora-presidente do Instituto Cactus. Ela é uma investidora social com mais de 20 anos de experiência em filantropia e impacto social.